“Essa guerra é só um aperitivo. Essa guerra contra a Rússia –entre a Rússia e a Ucrânia, mas usada contra Rússia—é um preparativo para uma guerra maior, que é a guerra contra a China. O inimigo está lá. Lá é que está o grande dinamismo econômico do mundo, que desloca a Europa. A Europa passa a ser um apêndice bastante secundário ao continente asiático.”

Assim o jornalista e escritor José Luiz Del Roio analisa o conflito em curso na Europa, resultante da tentativa norte-americana de continuar a progressiva expansão da Otan até as fronteiras da Rússia. Dirigente do PCB nos anos 1960 e fundador, ao lado de Marighella, da Ação Libertadora Nacional, ele foi senador na Itália e integrou a Assembleia Parlamentar da Europa em Estrasburgo no início deste século.

Falando ao TUTAMÉIA às vésperas de completar oitenta anos, Del Roio aponta as questões de fundo que envolvem a guerra na Ucrânia (clique no vídeo para acompanhar a íntegra da entrevista e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“O objetivo, que eles não conseguem, é entrar naquela imensa área euroasiática onde tem tudo. O capitalismo liberal tem fome é insaciável. E não consegue entrar nesse mundo. Ele tem de ficar comendo pão que vem da Rússia, fertilizante da Rússia, gás que vem da Rússia. Então aí vem o primeiro desespero: a conquista daquele espaço. A Rússia é uma grande potência. Tem sua grande burguesia, mas é um capitalismo de estado, que está fazendo uma coisa ainda mais perigosa, está fazendo uma aliança com o socialismo de mercado, que é a China.”

As consequências são dramáticas para o chamado “mundo ocidental”, diz Del Roio: “A concorrência é total. Os trezentos, quatrocentos ou quinhentos anos de domínio ocidental estão para cair, estão para desmoronar”. Por isso, o raciocínio capitalista é ir para a guerra:  têm de conquistar essas matérias primas, ter mais lucro. A justificativa é a defesa dos direitos humanos e da democracia, supostamente prerrogativas exclusivas desse Ocidente, “o mesmo Ocidente que criou as colônias, a escravidão negra, a Primeira Guerra Mundial, o fascismo, o nazismo…”

Ele ainda aponta outro fato como influente no processo que levou ao atual conflito militar:

“É preciso levar em conta que os Estados Unidos são uma potência decadente. Internamente, institucionalmente, vivem uma situação difícil, a economia não avança, a infraestrutura está aos pedaços. O presidente Biden, hoje, está quase com a mesma popularidade do Bolsonaro; hoje está com cerca de 36%. Isso, para os Estados Unidos, talvez seja o presidente mais impopular da história, e a guerra não ajudou, fez com que ele caísse mais ainda: 62% estão contra. A crise norte-americana vai se acentuar, e a Europa vai ter de dar um jeitinho, até porque essa guerra ela não vence. Ele não vence. Vamos pagar caro o preço de tudo isso.”

Povo da Europa vai sofrer

A situação é grave, está morrendo gente, vai ter muita infelicidade no campo europeu, com repercussões no mundo todo. É uma tristeza.

A população da Europa ocidental está um pouco aturdida. Não esperava essa situação porque os meios de comunicação são mentirosos. Sempre deformam a questão.

O preço do barril de petróleo passou dos cem dólares e pode perfeitamente chegar a cento e cinquenta, cento e setenta –são os grandes especialistas do petróleo que dizem isso. Ora, a população da Europa ocidental não tem petróleo, não tem gás. Isso tem repercussão nos preços. A minha conta pessoal, em Milão, aumentou em 150%, isso antes de começar a guerra. Haverá uma necessidade premente de gás.

Isso preocupa o cidadão comum. Mas há outra coisa que preocupa o cidadão comum: a Itália é uma país que tem sua dieta alimentar baseada no trigo, pão, pizza, massa. E a Itália não tem trigo. A Europa não tem trigo! O trigo vem da Rússia, que está bloqueada. Como nós vamos fazer sem trigo? Penso também no francês sem sua baguette… Já imaginou o francês sem sua baguette? O preço vai às estrelas.

Outra coisa: a Europa não produz fertilizantes para a agricultura, é muito baixa. Os fertilizantes vêm da Rússia. Como é que nós vamos fazer?

Isso estou dizendo porque, depois de ficarem entorpecidos pela propaganda de guerra, alguns jornais começam a filtrar esses pequenos problemas, e alguns primeiros ministros são obrigados a dizer: Olha, nós vamos ter de apertar muito a cinta.

Diplomacia subalterna e expansão nuclear da OTAN

A minha visão dos políticos, dos dirigentes da União Europeia é a pior possível.

Um grande estudioso norte-americano na Universidade de Columbia, o Gilbert Doctorow, que diz que tanto a Comissão Europeia quanto o Conselho Europeu só têm imbecis. Eles não entendem nada. Estão jogando a Europa numa loucura.

É incrível como é pequena a diplomacia, a direção europeia nesse momento. É totalmente subalterna aos Estados Unidos. Totalmente. É uma pena.

A União Europeia, em suas origens remotas, era uma outra coisa. Depois da Segunda Guerra, o ideal era que a Europa cuidasse de suas feridas, do seu passado imundo. Fosse uma área de paz, antinazista, antifascista. Mas, naquele momento, os Estados Unidos, em 1947, decidiram pela criação de um organismo europeu, a Otan. E todo o longo caminho para criar a União Europeia sempre tem essa marca: Otan. A Otan é democrática, dizem. A Otan, então, é uma imposição norte-americana e, sobretudo, a Alemanha e a Itália são obrigadas a cumprir. São países vencidos.

Uma vez perguntei ao então presidente da Itália, Giulio Andreotti, como havia sido a assinatura da criação da Otan na Itália, onde estamos cheios de bases da Otan. “Que assinatura?”, ele perguntou. “E eles me consultaram? Não consultaram nada!” Basta essa resposta de Andreotti para vocês verem como a Otan é democrática. A Itália hoje é pontilhada de bases da Otan, com armas atômicas, e os italianos não têm controle. E assim foi se espalhando.

Poderio militar da OTAN 

Tem navios em nome da Otan passeando em águas chinesas. A Otan é a Organização do Tratado do Atlântico Norte. O que eles estão fazendo no Mar da China? Não respeitam nem a legalidade deles mesmos. Aí ficam tentando ampliar a Otan para a Nova Zelândia, para a Austrália, está todo esse jogo: a Otan seria o grande monstro para conter essa aliança Russo-Chinesa.

A Otan é muito forte militarmente.

Vejam a situação. Neste ano, somos oito bilhões de habitantes no planeta. A Otan tem mais ou menos setecentos milhões de habitantes, então cerca de nove por cento da população mundial estão na Otan –Estados Unidos e países da Europa Ocidental. Os Estados Unidos e a Otan respondem por cinquenta por cento dos gastos militares do mundo. Eles são nove por cento da população do planeta e gastam 50% dos gastos militares do planeta. Só isso já revela o seu caráter agressivo, o seu caráter agressivo planetário.

O problema é que sua base são os Estados Unidos, e os Estados Unidos estão mal. Eles têm seus problemas, muito sérios, muito mais sérios do que tem a Rússia, do que tem a China e do que tem as alianças criadas na Rota da Seda, todos os países asiáticos…

É uma guerra de contenção. Conte isso [aliança russo-chinesa] e, se possível, vencer.

Armas econômicas são mortais

A China já tem o seu sistema Swift, que tem outro nome, e vai ser usado pela Rússia agora. Claro que a Rússia vai sofrer com isso. Mas faz parte do jogo. À parte cenas diplomáticas, a China está totalmente com a Rússia porque, para ela, é fundamental para o seu futuro, inclusive, de resistência ao imperialismo.

É claro que eles estão criando, vão criar, sobretudo a China, que a Rússia não tem essa força, vai criar todo um sistema internacional diferenciado. Menos monopolístico, menos privatista, um pouco mais solidário, um pouco mais respeitoso dos povos. Isso ela vai criar.

Vamos a esse choque também porque, vejam vocês, é um absurdo que um país possa bloquear as operações bancárias de qualquer país do mundo na hora em que ele quiser. É o que vive a Venezuela. A Venezuela já vive isso há quantos anos? Agora tem um paisinho aí pequenino, de onze milhões de habitantes, que vive isso há cinquenta anos.

Isso é guerra. São armas mortais, de ataque. Já dizia o presidente Woodrow Wilson, dos Estados Unidos, em 1919: Vamos criar as sanções, porque são uma coisa extraordinária; você mata o inimigo dentro da casa dele, e você não tem nenhuma baixa.

Sentimentalismo seletivo

Em 1999, a Alemanha decidiu despedaçar a Iugoslávia, com grande apoio do Vaticano, e também com a colaboração da Itália. A Sérvia resistia. Decidiram que a Sérvia era o mal de todo o planeta, quer a hora em que a Sérvia fosse democratizada, a Europa estaria em paz. Bombardearam a Sérvia.

Os aviões partiram todos da Itália para o bombardeio, que durou setenta e oito dias. Durante setenta e oito dias a Sérvia foi bombardeada, e ela absolutamente indefesa. Não tinha canhões antiaéreos que pudessem atingir os aviões da Otan. Esses aviões passavam por cima de minha casa. O bombardeio foi in-dis-cri-mi-na-do. Tudo!

Começaram o bombardeio de uma forma precisa: destruindo o Palácio dos jornalistas, onde se agrupavam as agências, os jornalistas que trabalhavam. Foram oitenta e poucos mortos. Teve festa na imprensa da Europa ocidental! “Assim esses mentirosos não falam mais!”

Depois, para provocar, tiveram a audácia de arrasar a embaixada da China: “Assim esses chineses ficam quietos, não se metem”.

E o bombardeio continuou, indiscriminado. Não importante quantas crianças, mulheres… Não era contra um Exército….

Bombardearam durante setenta e oito dias. Depois entraram com seus exércitos, deram tiros com seus canhões, com balas-bomba com urânio empobrecido. Câncer. Até hoje morre gente na Sérvia por causa disso. Usaram armas proibidas. E por que nós sabemos disso? Porque muitos soldados italianos ficaram com câncer.

Era uma festa. Jamais você viu uma lágrima pelas famílias sérvias despedaçadas. Uma lágrima!

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