Violeta Parra (untitled)
Violeta Parra (untitled)

A Revolução Cubana se impôs em um país subordinado aos Estados Unidos de todos os pontos de vista. Embora com fachada de uma República, éramos uma colônia perfeita, exemplar, em termos econômicos, comerciais, diplomáticos e políticos. E estivemos perto de também ser em termos culturais.

Nossa burguesia olhava o tempo todo para o Norte; de lá importava sonhos, esperanças, fetiches, modelos de vida. Enviava seus filhos ao Norte para estudar, com o desejo de que assimilassem o admirável espírito competitivo dos “vencedores” ianques, seu estilo, sua maneira única e superior de se estabelecer neste mundo e de subjugar os “perdedores”.

Essa “vice-burguesia”, como chamou Roberto Fernández Retamar, não se limitava a consumir avidamente qualquer produto da indústria cultural dos Estados Unidos que caía em suas mãos; não só isso. Colaborou ao mesmo tempo na divulgação, no âmbito ibero-americano, do american way of life e manteve para si parte dos lucros. Cuba era um laboratório cultural eficaz a serviço do império, concebido para multiplicar a exaltação da “nação escolhida” e sua liderança mundial.  Atrizes e atores cubanos dublavam em espanhol as mais populares séries de televisão estadunidenses, que depois inundariam o continente. De fato, estivemos entre os primeiros países da região a ter televisão — desde 1950. Parecia um salto para a frente, para o chamado “progresso”; mas era um fruto envenenado. A programação da televisão cubana, muito comercial, funcionava como uma réplica da pseudocultura made in USA, com telenovelas, jogos de beisebol das Grandes Ligas e da liga nacional, programas de competição, cópias de reality shows estadunidenses e publicidade o tempo todo. A revista Selecciones de Reader’s Digest começou a aparecer em espanhol em 1940, em Havana, com toda a sua carga venenosa, publicada por uma empresa de mesmo nome. Esse símbolo da idealização do modelo ianque e da demonização da URSS e de qualquer ideia próxima à emancipação foi traduzido e impresso na Ilha, e daqui distribuído para toda a América Latina e Espanha.

A própria imagem de Cuba que se difundia internacionalmente foi reduzida ao “paraíso” tropical fabricado pela máfia ianque e seus cúmplices cubanos. Drogas, jogos de azar, prostituição, tudo colocado a serviço do turismo VIP do Norte. Lembre-se que o projeto de Las Vegas havia sido projetado para o nosso país e a Revolução o abortou.

Fanon falou do triste papel da “burguesia nacional” – já formalmente independente do colonialismo – diante das elites das antigas metrópoles, “que se apresentam como turistas apaixonados pelo exotismo, caça e cassinos”. E acrescentou:

Se você quer uma prova dessa eventual transformação dos elementos da antiga burguesia colonial em organizadores de festas para a burguesia ocidental, vale a pena evocar o que aconteceu na América Latina. Os cassinos de Havana, do México, as praias do Rio, as jovens brasileiras ou mexicanas, as mestiças de 13 anos, Acapulco, Copacabana, são os estigmas dessa atitude da burguesia nacional (Fanon, 2011 [1961]).

Nossos burgueses, submissos “organizadores de festas” para os Ianques, fizeram todo o possível para ter Cuba culturalmente absorvida por seus senhores durante a república neocolonial. Mas houve três fatores que frearam esse processo: o trabalho das minorias intelectuais que defenderam, contra toda a maré, a memória e os valores da nação; a semeadura de princípios de José Martí e patrióticos dos professores de escolas públicas cubanas; e a resistência de nossa poderosa cultura popular, mestiça, altiva, ingovernável, nutrida pela rica herança da espiritualidade de origem africana.

Fidel, em seu discurso A História me absolverá, listou os seis principais problemas de Cuba e, entre eles, ressaltou “o problema da educação”. E ele se referia à “reforma integral do ensino” como uma das missões mais urgentes que a futura república libertada teria que empreender (Castro, 2007 [1953]).

Assim, a revolução educacional e cultural começou praticamente a partir do triunfo de 1º de janeiro de 1959. No dia 29 do mesmo mês, convocado por Fidel, um primeiro destacamento de 300 professores, 100 médicos e outros profissionais partiram para a Sierra Maestra para levar educação e saúde para as áreas mais remotas. Na mesma época, Camilo Cienfuegos e Che lançaram uma campanha para erradicar o analfabetismo nas tropas do Exército Rebelde, levando em conta que mais de 80% dos e das combatentes eram analfabetos.

Em 14 de setembro, o antigo Campo Militar de Columbia foi entregue ao Ministério da Educação para se construir ali um grande complexo escolar. A promessa de converter quartéis em escolas começava a ser cumprida: 69 fortalezas militares tornaram-se centros educacionais. Em 18 de setembro, a Lei n. 561 criou 10 mil salas de aula e entregou o credenciamento a 4 mil novos professores.

Em 1959 foram criadas instituições culturais de grande importância: o Instituto Cubano de Arte Cinematográfica e Indústria (ICAIC), a Gráfica Nacional, a Casa de las Américas, o Teatro Nacional de Cuba, com um Departamento de Folclore e uma visão sem preconceitos e antirracista sem precedentes no país. Toda essa nova institucionalidade revolucionária foi orientada para uma compreensão descolonizada da cultura cubana e universal.

“Camilo Cienfuegos e Che lançaram uma campanha para erradicar o analfabetismo nas tropas do Exército Rebelde, levando em conta que mais de 80% dos e das combatentes eram analfabetos”

Foi 1961, porém, foi o ano-chave em que uma profunda revolução educacional e cultural começou em Cuba.

É o ano em que Eisenhower rompe relações diplomáticas com nosso país. O ano em que Roa denunciou na ONU “a política de assédio, retaliação, agressão, subversão, isolamento e ataque iminente dos Estados Unidos contra o governo cubano e o povo” (Roa, 1986); o ano da invasão de Playa Girón e da luta contra grupos armados e financiados pela CIA. É o ano em que o governo dos EUA, já presidido por Kennedy, intensificou sua ofensiva para sufocar economicamente Cuba e isolá-la da Nuestra América e de todo o mundo ocidental.

1961 é também o ano em que Fidel proclama o caráter socialista da Revolução, em 16 de abril, na véspera da invasão denunciada por Roa. Algo que, levando em conta a influência na ilha do clima da Guerra Fria e da cruzada macartista, antissoviética e anticomunista, mostrou que o jovem processo revolucionário vinha conformando, a uma velocidade incrível, uma hegemonia cultural em torno do anti-imperialismo, da soberania, da justiça social, e da luta para construir um país radicalmente diferente.

Mas é igualmente o ano da epopeia da alfabetização; da criação da Escola Nacional de Instrutores de Arte; das reuniões de Fidel com representantes da intelectualidade e seu discurso fundador de nossa política cultural — Palavras aos Intelectuais; ano do nascimento da União de Escritores e Artistas de Cuba (Uneac) e do Instituto Nacional de Etnologia e Folclore (Castro, “Palavras aos Intelectuais”, discurso de 1961).

Quase quatro décadas depois, em 1999, na Venezuela, Fidel resumiu seu pensamento em torno do componente cultural e educativo em todo processo revolucionário verdadeiro: “Uma revolução só pode ser filha da cultura e das ideias” (Castro, 1999).

Mesmo que faça mudanças radicais, mesmo que dê terra aos camponeses e elimine o latifúndio, mesmo que construa moradias para aqueles que sobrevivem em bairros insalubres, mesmo que coloque a saúde pública a serviço de todos, mesmo que nacionalize os recursos do país e defenda sua soberania, uma revolução nunca seria completa ou duradoura se não der um papel determinante à educação e à cultura. Devemos mudar as condições materiais de vida do ser humano e devemos simultaneamente mudar o ser humano, sua consciência, seus paradigmas, seus valores.

A cultura nunca foi para Fidel algo ornamental ou uma ferramenta de propaganda — um erro frequente ao longo da história entre os líderes da esquerda. Ele a via como uma energia transformadora de alcance excepcional, que está intimamente ligada à conduta, à ética, e é capaz de contribuir decisivamente para a “melhoria humana” na qual José Martí tinha tanta fé. Mas Fidel a viu, acima de tudo, como a única maneira imaginável de alcançar a emancipação completa do povo: o que lhes oferece a possibilidade de defender sua liberdade, sua memória, suas origens, e de desfazer a vasta teia de manipulações que fecham o caminho do dia a dia. O cidadão educado e livre que está no centro da utopia de Martí e Fidel deve estar preparado para compreender plenamente o entorno nacional e internacional e decifrar e contornar as armadilhas das máquinas da dominação cultural.

Em 1998, no VI Congresso da Uneac, Fidel concentrou-se no tema “relacionado à globalização e à cultura”. A chamada “globalização neoliberal”, disse ele, é “a maior ameaça à cultura, não só à nossa, mas à do mundo”. Devemos defender nossas tradições, nossa herança, nossa criação, contra o “instrumento mais poderoso de dominação do imperialismo”. E concluiu: “tudo está em jogo aqui: identidade nacional, pátria, justiça social, Revolução, tudo está em jogo. Essas são as batalhas que temos que lutar agora” (Prieto, 2021).

São, naturalmente, “batalhas” contra a colonização cultural, contra o que Frei Betto chama de “globocolonização”, contra uma onda que pode liquidar nossa identidade e a própria Revolução.

Fidel já estava convencido de que, na educação, na cultura, na ideologia, há avanços e retrocessos. Nenhuma conquista pode ser considerada definitiva. É por isso que ele retorna ao assunto no estremecedor discurso de 17 de novembro de 2005 na Universidade de Havana (Castro, Discurso na Universidade de Havana, 2005).

Fidel nos adverte que as máquinas da mídia, juntamente com a incessante propaganda comercial, vêm para gerar “respostas condicionadas”. A mentira”, diz ele, “afeta o conhecimento”; mas “a resposta condicionada afeta a capacidade de pensar”.1

Desta forma, continuou Fidel, se o Império diz que ‘Cuba é ruim’, então ‘todos os explorados do mundo, todos os analfabetos, e todos aqueles que não recebem assistência médica ou educação ou têm qualquer garantia de trabalho ou de qualquer coisa” repetem que “a Revolução Cubana é ruim”. Assim, a soma diabólica da ignorância e manipulação engendra uma criatura patética: o pobre de direita, aquele infeliz que opina, vota e apoia seus exploradores.

“Sem cultura não há liberdade possível”, repetia Fidel. Os revolucionários, segundo ele, são obrigados a estudar, a nos informar, a nutrir nosso pensamento crítico dia após dia. Essa formação cultural, juntamente com os valores éticos essenciais, nos permitirá nos libertar definitivamente em um mundo onde predomina a escravidão de mentes e consciências.

Seu apelo para “nos emancipar por nós mesmos e com nossos próprios esforços” equivale a dizer que devemos nos descolonizar com nossos próprios esforços. E a cultura é, naturalmente, o principal instrumento desse processo descolonizador de autoaprendizagem e de auto-emancipação.

Em Cuba estamos atualmente mais contaminados do que em outros momentos de nossa história revolucionária pelos símbolos e fetiches da “globocolonização”. Devemos combater a tendência de subestimar esses processos e trabalhar em duas direções fundamentais: promover intencionalmente opções culturais genuínas e promover uma visão crítica em torno dos produtos da indústria do entretenimento hegemônico.

É fundamental fortalecer a articulação efetiva de instituições e organizações, comunicadores, professores, instrutores, intelectuais, artistas e outros atores que contribuam direta ou indiretamente para a formação cultural do nosso povo. Todas as forças revolucionárias da cultura devem trabalhar de forma mais coerente. O sentido anticolonial deve ser transformado em um instinto.


 

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