No Brasil, o parlamentarismo não é um sistema de governo, mas um instrumento de golpe de Estado, um desvio, uma pinguela de que a casa-grande lança mão sempre que supõe ver seu poder político ameaçado, seja por uma dissidência no bloco hegemônico, seja pela simples suspeição de emergência das massas, aquela ameaça tributada desde sempre ao trabalhismo de feição varguista, mas fruto do inevitável desenvolvimento do processo social que a direita, até aqui, não conseguiu congelar.

Por todos os anos 50 e 60 do século passado, a capciosa emenda Raul Pilla, que instituía o parlamentarismo pela via congressual (em si um absurdo), esteve na ordem do dia do debate político, nas mãos da oposição golpista, apresentada e reapresentada em todas as legislaturas, arguida como alternativa institucional às crises que a própria reação promovia na incansável faina com vistas à desestabilização dos governos populares, como os de Vargas (1954), João Goulart (1964) e Dilma Rousseff (2016). A emenda seria vitoriosa em 1961, no auge da intentona militar que pretendia impedir a posse do vice-presidente constitucional, João Goulart, chamado ao posto em face da renúncia do presidente titular, Jânio da Silva Quadros. Antes, tentara impedir a posse de Juscelino Kubitscheck e Jango, eleitos em 1955. Uma dissidência militar impediu a consumação do golpe. O episódio ficou registrado como o “contragolpe de 11 de novembro”, ou simplesmente “novembrada”.

Depois do Vargas desenvolvimentista e nacionalista do governo democrático encerrado de forma trágica em 24 de agosto de 1954, a direita civil e militar, derrotada na tentativa de desestabilizar o quinquênio Juscelino, nada obstante os levantes de Jacareacanga e Aragarças e os seguidos pedidos de impeachment, considerava intolerável o retorno do trabalhismo, com a posse de Jango, anatematizado como “herdeiro de Vargas”, e acusado de pretender instaurar uma democracia sindicalista.

Recordemos a História

Em 1961, os ministros militares (Odílio Denys, da guerra; Silvio Heck, da marinha, e Gabriel Grün Moss, aeronáutica), na sequência da renúncia do presidente Jânio Quadros, se insurgem contra a posse do vice-presidente constitucional, João Goulart, desencadeando a chamada “crise da legalidade”, que se concertou mediante reforma constitucional que implantou o parlamentarismo, uma traficância que envolveu militares insubordinados e um Congresso de joelhos vergados. Nada obstante o aparato formal, a mudança de regime não passava de golpe parlamentar, perpetrado contra o presidencialismo e os poderes constitucionais do presidente. Contra, sobretudo, a soberania popular. Foi o preço pago aos militares para assegurar a posse do vice constitucional: Jango, ao final, tomaria posse, mas não governaria, castrado em seus poderes. Os generais insurgentes não foram punidos, nem esses nem os muitos que permaneceram conspirando contra as instituições democráticas, como fazem até hoje. Haviam estado na tentativa de deposição de Vargas, na tentativa de impedir a posse de Juscelino em 1955, e atuariam ainda nas articulações da ditadura de 1964, que manteriam de pé por longos 21 anos. E estão agora na retaguarda do bolsonarismo.

Fruto de um golpe de Estado, implantado contra a manifesta vontade nacional que por todos os meios defendia a posse do vice João Goulart e a mantença da ordem presidencialista, o novo sistema seria revogado por esmagadora maioria de votos no plebiscito a que foi submetido em 1963. De um eleitorado de 18 milhões de pessoas, 11,5 milhões votaram no plebiscito. O resultado determinou a volta ao sistema presidencialista, por 9,4 milhões de votos contra 2 milhões.

A repulsa ao parlamentarismo seria novamente pronunciada – e uma vez mais pela imensa maioria votante – no plebiscito de 1993, convocado nos termos da Constituição de 1988, para que o povo escolhesse entre monarquia e república, e entre presidencialismo e parlamentarismo. Com 55% dos votos, o presidencialismo foi confirmado como a escolha da maioria. O parlamentarismo teve 25% dos votos e a monarquia, 10%.

A partir desse veredito, a tramitação de qualquer emenda tendente a mudar o regime só poderá tramitar após autorização plebiscitária. Pois não é que, em pleno ano eleitoral, a cerca de seis meses do pleito presidencial, o atual presidente da Câmara dos Deputados – retrato de corpo inteiro da decadência moral e intelectual do poder legislativo – aparece com a proposta estapafúrdia e velhaca de um “presidencialismo mitigado”. Estapafúrdia por tudo que é óbvio (pelo que pretende e pela crassa inoportunidade) e velhaca, pois é simplesmente o nome de fantasia de um parlamentarismo disfarçado, um projeto de golpe de Estado contra a democracia representativa.

O que de fato pretende a escória da política brasileira, na expectativa de não poder impedir a eleição de candidatos populares à presidência da república, é, precatadamente, retirar do povo o direito de eleger seu governante – reconquistado em 1989 a tantas e tão duras penas! –, transferindo a decisão da soberania popular para um colégio de 594 parlamentares, uns simplesmente negocistas, outros milicianos, outros assacadores contumazes do erário, como a choldra chamada Centrão, cujo mais ilustre representante é o próprio capitão presidente.

Pela proposta do lamentável presidente da Câmara, o presidente é eleito pelo povo mas não governa: é a versão tropical da rainha da Inglaterra. Vai a solenidades, viaja, distribui condecorações e comendas, recebe embaixadores. Enquanto isso, o primeiro-ministro, eleito pelo Congresso (por um Congresso como este que está aí), é quem dá as cartas, escolhe, nomeia e comanda o ministério.

Para emprestar pompa e circunstância ao andamento da coisa (rejeitada, relembro, em dois plebiscitos), o jagunço alagoano nomeou uma junta de parlamentares e oferece-lhes um “conselho de jurisconsultos” – entre os quais figura, vejam só, um campeão de arrivismo, o ex-presidente Michel Temer, o perjuro.

O golpismo cautelar está apenas ensaiado e deverá cumprir o mesmo papel antes levado a cabo pela emenda Raul Pilla, a solução mágica que a direita carregará no bolso do colete, pronta para entrar em ação na primeira crise institucional que ela mesma – a direita nativa e os procuradores do imperialismo – não terá dúvidas em cavar quando seus interesses exigirem o enfrentamento de governos nalguma medida progressistas. Como reagirá a Faria Lima, e como reagirão os potentados do agronegócio a um governo que, como promete o candidato Lula, “coloque os pobres no orçamento e os ricos no imposto de renda”? Ou que reveja a “reforma” trabalhista”? Os meios de que dispõe a casa-grande são esses: insurgência militar, golpe parlamentar, impeachment e, até, a mudança de regime. De todas essas medidas vem lançando mão na República, sem dó nem piedade.

A segurança de um eventual governo progressista, já não digo de esquerda, está na sustentação popular com a qual possa contar, e neste sentido é animadora a iniciativa de organização em todo país de comitês populares pluripartidários ou mesmo não partidários, os quais, atuando já agora para o pleito, mantenham-se organizados e mobilizados durante o governo, e preparados para defendê-lo. Parece que a militância petista está convencida desta necessidade. Torço pelo seu êxito.

***

Revanchismo – Recheado de viúvas da ditadura, o Ministério da Defesa volta a expelir, às vésperas do aniversário do golpe de 1º de abril de 1964, uma “ordem do dia” ofensiva à Constituição e à memória nacional. Assinada por Braga Netto e os comandantes das três forças, fruto da impunidade que o Estado brasileiro concedeu aos torturadores e seus cúmplices, a lamentável provocação foi ecoada por Hamilton Mourão (o inútil) nas redes sociais. Mas não adianta: por mais que essas figuras minúsculas mintam desavergonhadamente, por mais que tentem reescrever o passado, o golpe de 64 seguirá sendo um episódio sombrio, levado a cabo por militares indignos da farda e submissos a interesses forâneos, que nos lançou numa ditadura brutal e assassina, ao fim da qual recebemos um país falido, ajoelhado diante de credores internacionais. A História não os absolverá.

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