Até o início de abril, o escritor, prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa não havia feito nenhum pronunciamento sobre o transcurso das eleições no Peru, seu país de origem. Sempre muito ativo, mesmo após a perda das eleições à Presidência em 1990, para o então ex-presidente Alberto Fujimori1, o escritor guardou silêncio até o dia 19 de abril, quando então escreveu um texto expondo as razões para que o povo peruano votasse na candidata do partido conservador, Fuerza Popular, Keiko Fujimori. Do outro lado está o candidato que representa o partido de esquerda, Perú Libre, Pedro Castillo.

O candidato traz novos ares para o país de forte tradição conservadora.O seu surgimento na cena política, em 2017, quando participou ativamente de uma greve de mais de 75 dias por melhores condições de trabalho para os profissionais da educação, foi se destacando no âmbito político e ganhando cada vez mais apoio popular.

Desde então, adquiriu notoriedade, principalmente nas regiões rurais. Por meio de bandeiras importantes, como: “Nunca mais pobre em um país rico!”, consolidou-se como uma via de mudança bastante relevante, sobretudo dentro do cenário pandêmico que alastra a desigualdade por todo o continente.

No entanto, a vantagem que obteve sobre a candidata no primeiro turno foi diminuindo no transcorrer do segundo.

Para alguns especialistas, a posição de Llosa (sempre respeitado nos círculos conservadores), juntamente com o apoio massivo dos meios de comunicação mais o que consideram “falta de clareza” sobre quem seriam os membros da sua equipe técnica de governo, gerou um cenário que coloca os candidatos lado a lado durante o segundo turno.

Embora sempre tenha sustentado uma postura conservadora e crítica à política nacional, o escritor vem contribuindo para o avanço da candidata, o que significa um total retrocesso em termos humanitários no país.

A postura de Llosa abre algumas janelas para a análise conjuntural da sociedade peruana e auxilia no entendimento sobre o momento que o continente atravessa: o avanço do negacionismo.

O escritor, que em 2000 lançou o livro La fiesta del Chivo (no Brasil, A festa do Bode), obra que mescla episódios reais e ficção, relatando a ditadura de Rafael Trujillo (1930-1961) na República Dominicana, principalmente a truculência cometida contra as dominicanas e as atrocidades do período, não titubeou em manifestar seu apoio a Keiko, afirmando que era a “opção menos pior”, uma vez que o projeto do candidato da oposição poderia desmantelar a economia nacional e afundar o país no obscurantismo da estatização e consequentemente com um olhar mais centralizado nos setores populares da sociedade.

“Com a condição, é claro, de que Keiko Fujimori se comprometa, em nome dessas liberdades públicas que afirma defender agora, a respeitar a liberdade de expressão, a não perdoar Vladimiro Montesinos, responsável pelos piores crimes e roubos da ditadura, a não expulsar ou mudar os juízes e procuradores do Poder Judiciário, que nos últimos tempos têm tido uma atitude tão corajosa em defesa da democracia e dos direitos humanos, e, sobretudo, a convocar eleições no final do seu mandato, no prazo de cinco anos . Se cumprir essas obrigações, Keiko Fujimori terá a oportunidade ímpar de tomar o poder por meio de eleições limpas e de contar com uma ampla base social e popular para realizar as reformas necessárias que façam do Peru um país justo, livre e justo. Moderno e retribuidor à liderança que já teve na América Latina no passado”.

Vargas Llosa

Embora a candidata, filha do ex-presidente, tenha declarado abertamente sua intenção de conceder o indulto ao seu progenitor, que atualmente cumpre a pena de 25 anos por crimes de lesa-humanidade cometidos durante os anos em que presidiu o Peru, e negue as esterilizações em massa autorizadas por ele2, não houve constrangimento por parte do escritor, que seguiu expondo seu estado de delírio sobre a possível candidatura de Castillo, mesmo que a realidade de anos de crimes e corrupção que marcaram o período do fujimorismo tenha sido comprovada judicialmente.

A “inviabilidade” de ter um presidente como Pedro Castillo – e todos os argumentos que expõe – é pautada em um imaginário que sempre esteve presente na América Latina, um imaginário descontextualizado e desonesto, segundo o qual um projeto de político com viés de esquerda será o total empobrecimento e destruição da nação. Tal propaganda gera temor no povo, que muitas vezes só tem acesso a meios de comunicação hegemônicos, que são os que sustentam a ideia enganosa.

O que produz espanto no seu texto é o fato de que em nenhum momento Mario Vargas Llosa expôs um dos maiores crimes executados durante a permanência do fujimorismo no poder: a esterilização de mulheres indígenas, pobres e campesinas.

Se em La fiesta del chivo o escritor manteve uma postura crítica de denúncia contra as atrocidades de Trujillo, no atual momento descartou qualquer espécie de humanismo. É no mínimo irresponsável que um escritor que todavia serve de referência para sua nação de origem, defenda, desde outro continente, uma candidata que representa o retorno de um governo eugênico e elitista, que por décadas perseguiu os pobres e cometeu barbáries contra as minorias existentes no país.

A possível eleição de Keiko no contexto da pandemia, que só aumentou a criminalização da pobreza, a fome, o desemprego, será um massacre para os povos que vivem nas regiões mais carentes.

É importante recordar que, de janeiro a março de 2020, foi registrado o desaparecimento de mais de 11.828 mulheres, o que ressalta a necessidade de um governo que olhe para o campo, região de maior concentração de desaparecimentos e feminicídios – precisamente nessas localidades a pobreza é endêmica e a violência é exercida cotidianamente, uma vez que a proteção estatal é quase nula.

Eugenia, criminalização da pobreza e crimes de lesa-humanidade

Desde o início do século XX o pensamento eugênico3 ganhou espaço no âmbito da ciência, desde então diversos projetos foram elaborados com a finalidade de extermínio e controle social sobre grupos determinados como “perigosos” ou “improdutivos”.

A esterilização é uma prática eugênica que foi utilizada em muitos países e nos mais diversos períodos históricos. O primeiro país a adotar massivamente a esterilização como método de controle social foram os Estados Unidos, que esterilizaram mulheres indígenas, negras e imigrantes por décadas. Não é surpreendente que tal procedimento tenha sido iniciado em um país em que o pensamento social predominante é que a valorização do indivíduo está na sua capacidade de produzir, dentro de um circuito indivíduo/sociedade/economia, onde a vida só tem importância se integrada à maquinaria capitalista.

Fortemente marcado pelo modelo neoliberal4, o governo Fujimori também utilizou práticas eugênicas. Entre 1996 e 2000, segundo a Comissão do Congresso peruano que, em 2002, investigou os casos de anticoncepção cirúrgica, 314.605 mulheres foram esterilizadas.

O programa de saúde denominado Programa Anticoncepção Cirúrgica Voluntária (ACV) foi pensado pelo então presidente, que usou como pretexto um suposto projeto de planejamento familiar, quando sua pretensão era diminuir os índices de natalidade nas regiões de concentração campesina, indígena e nos bairros pobres de Lima.

“El problema indio, la alta tasa de natalidad de las personas indígenas en comparación con los peruanos de ascendencia europea. Ante los altos niveles de pobreza asociados con las mujeres indígenas quechuahablantes en el Perú, el gobierno organizó “la política de planificación familiar”.

Beth Daley

A prática, executada muitas vezes sem permissão e outras vezes sob ameaças, gerou traumas perpétuos nas mulheres que foram submetidas ao procedimento. Anestesiadas, elas passaram pela cirurgia de ligadura de trompas e só posteriormente vieram a descobrir a impossibilidade de uma gestação.

“O maior crime da administração Fujimori continua sem grande repercussão e sem punição dos responsáveis: uma política eugenista que provocou a esterilização forçada de mais de 300 mil mulheres, evidentemente pobres e indígenas.”

François Barthélemy

A violência cometida contra essas mulheres, apesar de continuar ainda sem a devida repercussão e espaço nos meios de comunicação hegemônicos, levanta um debate essencial dentro das pautas feministas: o impacto do neoliberalismo sobre os corpos femininos e feminizados e como governos reacionários são perigosos em um continente racista e eugênico, onde o extermínio e a violência são práticas cotidianas contra as minorias. Não podemos perder de vista que a violência contra as mulheres, embora esteja atrelada a um sistema secular, ganhou novos contornos com a consolidação do modelo neoliberal, principalmente pela ausência de políticas públicas e protetivas.

No último dia 11, a Associação de Mulheres Atingidas por Esterilizações Forçadas organizou um protesto, especificando: “Estamos lutando há 25 anos e continuamos nos mobilizando pela Verdade, Justiça e Reparação”. A Associação de Vítimas também condenou a intenção da candidata presidencial Keiko Fujimori de, se eleita, perdoar seu pai, que cumpre pena de 25 anos por crimes contra a humanidade e corrupção.

Ao mesmo tempo, o grupo anunciou que deseja dialogar com o candidato de esquerda Pedro Castillo, rival de Fujimori na votação de 6 de junho, para exigir que garanta justiça e as devidas indenizações às vítimas.

Dentro desse contexto tão complexo, é desalentador pensar que o homem que enalteceu a força e a bravura das irmãs Mirabal na República Dominicana seja uma figura de peso de um possível retorno do fujimorismo no Peru.

Quando escreveu a La fiesta del Chivo, Vargas Llosa, afirmou:

La fiesta del Chivo tinha que ter uma perspectiva feminina: ‘A situação da mulher foi particularmente trágica na República Dominicana’”.

É uma lástima que a frase só teve sentido dentro da sua obra literária, não servindo de referência para pensar sobre a realidade de centenas de mulheres peruanas que tiveram as trompas ligadas pelo simples fato de serem pobres. Mais triste é que o prêmio Nobel não tenha escrito uma obra sobre a situação das mulheres do seu país. Aparentemente não há interesse dele em contar essa história.

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1 Em 7 de abril de 2009 o ex-presidente peruano Alberto Fujimori foi condenado a 25 anos de prisão por crimes de lesa-humanidade após sua fuga para o Japão. Em uma operação ousada chega ao Chile, mas logo foi levado ao Peru, seu país de origem, onde foi julgado e condenado. Entre os crimes que cometeu, estão: massacres de Barrios Altos e La Cantuta, cometidos pelo grupo paramilitar La Colina, sequestro de um jornalista e empresário e a esterilização de centenas de mulheres indígenas e campesinas, todas de origem humilde.

2 “Foi um plano de planificação familiar”, disse Fujimori, sobre o Programa Nacional de Salud Reproductiva y Planificación Familiar, praticado entre 1996 y 2000, período em que se estima tenham sido esterilizadas 300 mil pessoas, ainda que se desconheça quantas foram submetidas de maneira forçada ao procedimento.

3 “Entre o final do século 19 e o começo do século 20, havia uma tendência de reprodução seletiva. Se um humano era considerado indigno de transmitir sua hereditariedade a gerações futuras, era esterilizado contra sua vontade […] Muitos associam a palavra ‘eugenia’ aos nazistas e ao Holocausto. Mas isso está errado. Na verdade, Hitler aprendeu com o que os EUA haviam feito.”

4 “Na década em que esteve no poder (1990-2000), ‘o chinês’ – como é conhecido popularmente – foi campeão do neoliberalismo e recebeu aplausos das classes dirigentes do Peru, dos militares e dos organismos financeiros internacionais.”

 

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