putin xi ji pin

De tanto esticar, a corda rebentou. Ao cabo de um longo processo de acosso e humilhação, a Rússia decidiu extirpar militarmente o tumor russófobo ucraniano, circunstância que está a deixar os dirigentes ocidentais e a propaganda social em estado de choque mas sem a decência de assumir as responsabilidades que têm na situação. Durante oito anos, sem dar mostras de quaisquer escrúpulos, os Estados Unidos, a NATO e a União Europeia apoiaram o regime ucraniano sustentado por esquadrões da morte nazis saudosos de Hitler e aproveitaram essa cobertura para tentar criar uma imensa base militar que, uma vez incorporada na NATO, estrangulava militarmente a Rússia.

A intervenção desencadeada por Moscovo contra as estruturas militares e repressivas do regime ucraniano, tendo em vista igualmente criar condições que interrompam o massacre contínuo das discriminadas populações de origem russa, pretende liquidar essa estratégia atlantista. Principalmente cortando pela raiz a manobra para a integração de Kiev na Aliança Atlântica e deixando também definido o padrão de comportamento do Kremlin caso a NATO insista na integração da Geórgia. Sem esquecer as recentes advertências à Suécia e à Finlândia.

A partir de agora o mundo nunca mais voltará a ser o que foi desde o início da década de noventa do século passado, quando os Estados Unidos assumiram isoladamente o comando planetário, sem poderem ser contestados, aproveitando a extinção da União Soviética. Nestes dias, e apesar de ainda não se ter dissipado o nevoeiro de guerra, acabou a era da impunidade das ações imperiais e coloniais para implantação unilateral de um globalismo absolutista ao serviço de uma casta açoitada em nichos de riqueza criados à custa de toda a humanidade.

Começou, provavelmente, a era do multilateralismo, aquela em que o domínio absoluto dos Estados Unidos, flanqueado pelos aliados, passa a ser verdadeiramente contestado. A resposta militar russa à transformação da Ucrânia numa base militar da NATO quebra pela primeira vez o cerco e o ciclo de intimidação e contenção montado pela aliança contra um inimigo fabricado artificialmente e do qual necessita para sobreviver. O maior exército do mundo já não tem o poder absoluto, confirmando-se assim, na atual crise e com maior significado, o que já sucedera no Iraque, no Afeganistão e, de certa forma, na Síria.

Interpretada conjuntamente com o recente tratado estratégico assinado ao mais alto nível pela China e a Rússia, a ação russa na Ucrânia, não mais contestável do que muitas outras desenvolvidas pelos membros da NATO, é uma machadada na ordem mundial unipolar, que os Estados Unidos e seus súbditos pretendiam inquestionável.

Agora já não é. A Rússia deixou uma mensagem muito séria de que possui capacidade de resposta às ameaças contra as suas intenções de contribuir para uma nova ordem internacional na qual não mandem os mesmos de sempre à luz de uma espécie de direito divino de usucapião. As oligarquias russas estão a mostrar às oligarquias ocidentais que o caminho para o globalismo de índole tendencialmente autoritária não está livre de sérios escolhos.

A mensagem e ações da China, país que tem mantido uma proverbial cautela sobre os acontecimentos na Ucrânia, também não deixam dúvidas de que o nascente multilateralismo veio para ficar.

Nada disto tem a ver com democracia, direitos humanos, o bem-estar das pessoas, o respeito pelo ambiente e o aproveitamento dos recursos naturais com fins que beneficiem a humanidade.

O que está em causa são interesses, negócios, acesso aos bens que a Terra nos oferece, uma luta entre oligarquias e plutocracias, umas mais bem disfarçadas que outras, pela influência sobre governos, instituições nacionais e internacionais, conglomerados económicos e financeiros. As pessoas são meros instrumentos neste tabuleiro. É a sociopatia à solta, animada pela anarquia neoliberal que é determinante mesmo onde não é seguida segundo as plenas convicções fundamentalistas e ortodoxas.

A intervenção russa na Ucrânia não respeita o direito internacional. O pobre direito internacional que há décadas sofre tratos de polé às mãos dos que querem impor, em alternativa, uma «ordem internacional baseada em regras»; normas estas a cumprir por todos mas estabelecidas totalitariamente por uma só nação, os Estados Unidos da América. Um direito internacional despudoradamente invocado, de maneira histérica e alienada, por aqueles para quem violá-lo é o pão de cada dia.

De facto, entra pelos terrenos da alienação o coro dos dirigentes ocidentais e dos meios de propaganda corporativos que asfixiam a opinião pública de quase todo o mundo impondo-lhe uma opinião única sobre a operação da Rússia na Ucrânia. Um país onde o regime de base nazi – coisa de que tantos «bem informados» se esquecem – se dedicava há oito anos a uma metódica limpeza étnica de vastas regiões do Leste do país, acicatado e auxiliado pela NATO, que o tinha verdadeiramente adoptado. Ao mesmo tempo que as autoridades de Kiev, comprometidas com os Acordos de Minsk de 2015, contendo neles a solução diplomática para os conflitos no país, protelaram a sua aplicação até que Moscovo perdeu a paciência e as ilusões de que alguma vez a parte ucraniana tencionasse cumpri-los.

Para quem vive apenas na espuma dos dias, anestesiado e também alarmado pela chuva de soundbites manipuladores ou pela torrente de «análises» cacofónicas, é importante recordar que o exército ucraniano integrou manobras de NATO envolvendo o território, céus e águas da Ucrânia, em Junho, Julho e Setembro do ano passado, obviamente contra a Rússia. A Ucrânia fazia parte, de facto, da estrutura militar da NATO, pelo que representava uma ameaça à segurança de uma Rússia cercada por dezenas de milhares de tropas multinacionais dotadas com armamento ultramoderno e armas nucleares – tudo «defensivo» – constantemente humilhada, caluniada e tratada como um Estado pária. Este cenário contradiz plenamente o princípio da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) aceitar a Oriente e o Ocidente e segundo o qual a segurança é indivisível. Isto é, apesar de as alianças militares serem abertas a qualquer país que o deseje e tenha condições para as integrar, isso nunca poderá acontecer à custa da segurança de outro Estado.

Não passa de uma triste figura, uma expressão de hipocrisia, de elitismo próprio de aristocracias arruinadas e de arrogância colonial, a campanha de propaganda, intoxicação e pânico montada pelos dirigentes internacionais e pela máquina de propaganda que o neoliberalismo instalou com uma eficácia avassaladora no mundo ocidental e especial acuidade na União Europeia. A mentira tornou-se a verdade absoluta e indiscutível, sob pena de as opiniões diferentes da versão oficial serem consideradas mensagens do inimigo; a realidade paralela abafa e enterra factos, provas e circunstâncias.

Quem se indigna, sem conseguir evitar tons patéticos, contra a operação militar russa na Ucrânia encarou com bonomia a sangrenta destruição da Jugoslávia e entusiasmou-se com o cobarde bombardeamento da NATO sobre Belgrado; olhou serenamente para a cruel invasão do Afeganistão; babou-se de emoção com as «operações cirúrgicas» e a «guerra em directo» da devastadora agressão contra o Iraque – realizada a partir do momento em que o secretário de Estado norte-americano exibiu na ONU um frasquinho de um inocente pó branco que seria o «combustível» das armas químicas iraquianas inseridas num arsenal de armas de extermínio massivo que jamais apareceram; apoiou com ardor a guerra contra a Síria na qual a NATO criou e alimentou grupos de mercenários fundamentalistas islâmicos para retirar de Damasco o «tirano Assad» e instaurar «a democracia»; tal como na Líbia, onde a NATO, também de mão dada com terroristas islâmicos dos quais nasceu, por exemplo, o Isis ou Estado Islâmico, chacinou civis, assassinou de maneira revoltante o chefe de Estado e depois deixou o país à deriva, agonizando numa anarquia de que não se vê o fim; e mais ainda o que se passa no Iémen, na guerra provocada pela divisão do Sudão, na Somália, no Sahel; e sem contar com a inexistência na comunicação corporativa de informações sobre os bombardeamentos aéreos praticamente diários de Israel sobre a Síria.

As duas faces da R2P 

R2P, Responsability to Protect ou Responsabilidade de Proteger, foi uma doutrina inventada pelos Estados Unidos e a NATO para intervirem militarmente, promoverem golpes de Estado, assassinar ou mesmo chacinar em países que supostamente não respeitam as normas de conduta impostas por aquelas entidades.

Criado na administração norte-americana de William Clinton, o pretexto foi invocado com especial destempero pela secretária de Estado Madeleine Albright na guerra criminosa contra a Jugoslávia, incluindo o bombardeamento de Belgrado.

A chacina da Líbia foi outro exemplo em que foi aplicada a R2P, sem esquecer as «guerras humanitárias» protagonizadas por William Clinton como presidente norte-americano, entre as quais se podem recordar a invasão da Somália, bombardeamentos contra uma escola no Afeganistão e uma fábrica de produtos farmacêuticos no Sudão.

A intervenção militar ordenada pelas autoridades russas, sob comando do presidente Vladimir Putin, nos territórios do Leste da Ucrânia autoproclamados como Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, não representou nada de novo em relação ao que tem sido a prática dos Estados Unidos e aliados tanto na NATO como na União Europeia.

Há, no entanto, uma diferença factual a registar: as tropas russas, enviadas alegadamente num contexto de «manutenção de paz», têm como missão defender (R2P) os cidadãos ucranianos de origem russa habitando nos territórios do Leste da Ucrânia, centenas de milhares deles detentores de passaportes russos, de uma potencial e mais do que previsível agressão militar do regime de Kiev e das suas tropas de choque nazis. A presença das mais bem equipadas e preparadas tropas ucranianas na linha de contacto com a região do Donbass é uma prova inequívoca dessa intenção.

Existem, de facto, vários indícios de que uma invasão da região do Donbass conduzida pelo regime de Kiev estava já em andamento. A Missão de Observação da Organização de Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) em ação na linha de contacto registou nos últimos dias um aumento exponencial dos bombardeamentos para o interior dos campos inimigos executados, em maioria esmagadora, a partir do lado ocidental. Além disso, foi notada uma intensa atividade de veículos ucranianos de desminagem de terrenos, fazendo prever a iminência do avanço de forças terrestres.

Acresce que o programa do actual presidente do regime de Kiev, Volodymir Zelensky, previa a reconquista pela força do território russo da Crimeia e a «normalização» da situação nos territórios do Donbass, isto é, a concretização da limpeza étnica.

Postas as coisas neste pé, afinal a doutrina de Responsabilidade de Proteger será propriedade única e intransmissível de Washington e da NATO ou pode servir de exemplo a outras nações, neste caso a Rússia?

Seguindo a mesma linha de raciocínio, será que apenas os Estados Unidos e a Aliança Atlântica podem cercar militarmente outros países, inundando de armas, incluindo de extermínio em massa, as linhas avançadas das suas forças, sem que as nações assim ameaçadas tenham o direito de se defender e de proteger populações afins?

Da doutrina R2P aplicada pelos Estados Unidos e a NATO nasceu, por exemplo, uma entidade muito peculiar chamada Kosovo, governada por terroristas islâmicos e funcionando como entreposto de tráficos vários, entre eles o de órgãos humanos; no entanto, grande e sonoro é o escândalo porque do R2P aplicado pela Rússia decorre o reconhecimento de peculiares entidades como as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk. «Quem Putin julga que é para reconhecer outros Estados?», interrogou-se o penoso Joseph Biden, ligado aos auriculares e fixado no teleponto, mais ou menos na mesma ocasião em que confirmou o reconhecimento da anexação ilegal do território sírio dos Montes Golã por Israel. Tudo de uma transparente coerência, que pode ainda ser reforçada com a possível integração do Kosovo na NATO.

Quem vai à guerra dá e leva, é um aforismo português bem enraizado. Parece, porém, que há quem apenas queira dar sem correr o risco de levar. No fundo, não passa de um tique de quem acha que a impunidade dos comportamentos guiados por mentalidades coloniais e imperiais dura para sempre.

Porém, os tempos mudaram; as últimas semanas ilustram bem essa realidade e a reação de novo tipo ensaiada pela Rússia traduz uma alteração da relação de forças geoestratégica. Daí também a sufocante barragem de propaganda que executa uma metódica lavagem ao cérebro dos cidadãos, inspirada nos confins totalitários imaginados por George Orwell.

Um pouco de história recente

Sem ser necessário recuar por ora aos tempos em que «Lenin, os seus seguidores e a Rússia comunista bolchevique» criaram a Ucrânia, segundo a história recriada pelo oligárquico inner circle de Vladimir Putin, façamos uma revisão das origens mais recentes do problema ucraniano que conduziram à situação actual.

Depois de Gorbatchov e o alcoólico agente da CIA Boris Ieltsin terem desmantelado a União Soviética, a Ucrânia independente rapidamente se transformou num pródigo alimento da gula dos círculos político-militares ocidentais e das transnacionais globalizantes, meios imbuídos da sempre insaciável mentalidade colonial e da correspondente arrogância.

Em 2004, provavelmente porque nem tudo corria como devia, os centros do costume, Soros e companhia, organizaram uma revolução colorida, neste caso em tons laranja, para dar alento aos partidários da integração na União Europeia e na NATO, comandados pela nacionalista primeira-ministra Yulia Tymochenko, com ligações fascistas bem identificadas.

Em finais de 2013, a Ucrânia, sob a presidência do russófono Viktor Yanukovytch e abalada por uma corrupção endêmica, chegou a um ponto de fractura entre os partidários da adesão à União Europeia e à NATO e os defensores de um reforço da soberania aprofundando as ligações com a Rússia.

Recorrendo de novo à receita da revolução colorida, os Estados Unidos e a União Europeia montaram uma suposta «Revolução da Dignidade» que degenerou, em Fevereiro de 2014, nos acontecimentos da Praça Maidan, em Kiev, onde grupos de assalto nazis acabaram por assumir o poder determinante do movimento. Atiradores pertencentes a esses grupos usando fardas policiais e colocados nos telhados dos edifícios envolventes dispararam sobre manifestantes provocando numerosos mortos e feridos. Mais um exemplo das operações de bandeira falsa em que os Estados Unidos são especialistas há bastante mais de um século.

O golpe aconteceu quando Joseph Biden era vice-presidente de Obama e esteve directamente associado à montagem da operação. Depois foi recompensado generosamente, tendo o filho Hunter Biden como testa de ferro, com um importante cargo de administração numa das maiores empresas petrolíferas ucranianas.

Na sequência dos distúrbios em Kiev, o presidente Yanukovytch foi afastado. Enquanto isso, o embaixador norte-americano Geoffrey R. Pyatt e a subsecretária de Estado, a neoconservadora Victoria Nuland, operacionais do golpe, distribuem biscoitos aos manifestantes na Praça Maidan, por onde também deambulam vistosas figuras de instituições europeias, designadamente membros «progressistas» do Parlamento Europeu.

Uma vez imposta a «democracia» na Ucrânia e instalada uma administração sob controle paramilitar nazi em Kiev, o novo regime instaurou uma guerra civil contra as regiões Leste do país, habitadas maioritariamente por ucranianos de origem e língua russa. Tratava-se de eliminar a influência russa no país para impor um nacionalismo de índole fascista trabalhando pela integração na União Europeia e na NATO.

As tropas de assalto nazis, proclamando-se herdeiras dos terroristas ucranianos que tiveram a seu cargo as chacinas ordenadas por Hitler no início dos anos quarenta do século passado, distinguiram-se pela crueldade nas operações no Leste ucraniano, actuando como esquadrões da morte, onde as populações criaram dispositivos de autodefesa e acabaram por proclamar as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk.

O regime de Kiev perdeu a guerra, que foi suspensa através dos Acordos de Minsk, assinados em 2015 pelo governo ucraniano e os representantes das recém-criadas repúblicas, sob a égide da Alemanha, da França e da Rússia. Os documentos previam o cessar-fogo, o desarmamento das partes envolvidas e a autonomia dos territórios do Donbass de acordo com leis ucranianas a elaborar de modo a permitir essa solução.

Os cidadãos de origem russa na Ucrânia são considerados de segunda ordem: não podem ensinar nem aprender a sua língua e são discriminados social e administrativamente por falarem russo; meios de comunicação em língua russa são encerrados. A combinação de xenofobia com nazismo na actuação do regime ucraniano nunca preocupou os Estados Unidos, a NATO e a União Europeia.

Com a cumplicidade dos Estados Unidos, o governo de Kiev recusou-se sempre a aplicar os acordos, por terem sido assinados «sob a força das armas russas». No entanto, logo que Moscovo reconheceu as repúblicas no Donbass e iniciou as operações militares, o regime ucraniano apressou-se a apelar ao regresso à diplomacia. Simultaneamente, o presidente Zelensky iniciou a série de sucessivos e pungentes apelos aos Estados Unidos, à NATO e à União Europeia para que lhe enviasse ajuda militar. Isso não aconteceu: o dirigente ucraniano ficou a saber, da pior maneira, como os seus «amigos» ocidentais tratam aqueles de quem se servem para depois deitar fora. Ou de como o povo ucraniano não foi mais do que carne para canhão na grande operação de cerco à Rússia pela NATO. Respeito pelos direitos humanos?

Guerra de ideologias?

Muitos politólogos, essa casta que parece ter recebido o privilégio único de interpretar uma ciência oculta como é a política, asseguram que a crise ucraniana e, numa perspectiva mais ampla, o frente-a-frente entre a NATO e a Rússia é fruto de uma luta ideológica.

Ignorância, incompetência, má-fé, de tudo um pouco? Problemas de quem estuda por cartilha única e nada mais existe debaixo do sol.

Uma luta ideológica? Quais são as ideologias que se confrontam quando de um lado estão forças do capitalismo neoliberal e, do outro, forças do capitalismo neoliberal ainda que convivendo com um sistema de arreigadas tonalidades nacionalistas – reforçadas pelo acesso propagandístico e militar estrangeiro?

Trata-se de um confronto entre forças anticomunistas dos dois lados da barricada, como os mais recentes discursos de Vladimir Putin bem demonstram. O Ocidente vê-se ao espelho quando olha para a Rússia de Putin, mas a arrogância e o ego elitista fazem com que não se reconheça.

O que move estas forças não são ideologias mas interesses, a necessidade de aceder a um bolo planetário que uma parte, a colonial, exige na íntegra; e a que a outra pretende igualmente chegar, traduzindo afinal o confronto entre unipolaridade e multipolaridade – a que a China se junta.

O que está na raiz dos momentos que o mundo atravessa, e que representam uma ruptura com o passado recente, de poder tendencialmente globalista, é a quebra da unipolaridade Estados Unidos/NATO/União Europeia através do aparecimento de mais duas potências com uma escala de intervenção em crescendo e rivalizando na capacidade de estar presentes através do mundo na disputa de vias de comunicação, matérias-primas, mecanismos regionais e continentais de integração, desenvolvimento tecnológico e militar. Neste quadro não existem hoje dúvidas de que os donos disto tudo estão a perder privilégios que supunham eternos.

Os movimentos em curso arrasam também a chamada doutrina Wolfowitz, do então secretário da Defesa norte-americano, Paul Wolfowitz, que em 1992, logo imediatamente a seguir ao desaparecimento da União Soviética, postulou a necessidade de impedir que surgisse uma outra grande potência capaz de rivalizar com os Estados Unidos. Na altura, a formulação visava, imagine-se, a União Europeia, que não poderia jamais atingir condições que lhe permitissem disputar espaços, bens e poder com a potência imperial. A União cresceu, chegou até aos 28 membros, mas nunca deu qualquer razão para os receios de Wolfowitz. Os súbditos continuam no redil, mais mansos e obedientes hoje do que nunca.

Afinal os oligarcas russos que manobram o poder em Moscovo entendem que não podem ficar atrás dos oligarcas ocidentais como Gates, Bezzos, Musk e vários outros que tais, enriquecendo a um ritmo cada vez mais vertiginoso.

Uma coisa parece certa: a Europa pagará a factura mais elevada do efeito de boomerang das sanções à Rússia e ainda as consequências das contra-sanções que Moscovo diz estar a preparar. Como sempre, da mesma maneira que nos casos de guerra, os Estados Unidos serão menos prejudicados pela situação e ainda farão excelentes negócios com a venda de gás natural liquefeito (GNL) aos países europeus submetidos à crise energética e alegremente conformados – até satisfeitos – com a extinção do projecto, já concluído, do gasoduto Nord Stream 2 entre a Rússia e a Alemanha. Situação que o vice-presidente russo Medvedev comentou assim dirigindo-se aos europeus: «Bem-vindos ao corajoso mundo novo: dois mil euros por mil metros cúbicos de gás». 

Extinção de mitos

Dois mitos que servem de pilares à propaganda ocidental ruir fragorosamente nestes dias.

Um deles dizia-nos que Putin, oriundo no seu passado das fileiras do KGB, pretende recriar a União Soviética, pelo que os seus comportamentos se inseriram nessa estratégia. Se dúvidas houvesse, o seu famoso discurso sobre o reconhecimento das repúblicas do Donbass deixou tudo em pratos limpos. A Rússia é a campeã da «descomunização» e tem muito a ensinar à Ucrânia nesta matéria, foi mais ou menos o que Putin disse. Recorda-se que a oligarquia russa no poder condena de maneira veemente a submissão «a ideologias estrangeiras» no período soviético e o facto de, nessa altura, a Rússia ter sido governada por «não-russos» que obrigaram o país a sustentar as outras repúblicas da União, designadamente a Ucrânia.

Daí que sejam completamente destituídas de sentido as teorias sobre a suposta intenção de Moscovo de restaurar «o imperialismo soviético». De facto, o que inspira Putin e os círculos oligárquicos que gerem o seu país é a velha «alma russa», a herança cultural, religiosa e social da Grande Rússia, a Grã-Rússia imperial de matriz czarista. Uma espécie de neoconservadorismo rendido ao neoliberalismo económico e com um elitismo recuperado susceptível de degenerar em arrogância, sobretudo quando sente necessidade de responder à arrogância ocidental.

Dizer que Putin «tem nostalgia da URSS», como escreveram por cá estenógrafos de manga-de-alpaca atuando como «jornalistas», é um disparate até como meio de agitação e propaganda porque só consegue enganar quem deseja mesmo ser enganado.

A oligarquia transnacional globalista entrou em estado de choque porque percebeu que tem na Rússia um rival à altura, o qual, como agora deixou claro, não está disponível para se submeter. Um rival bem mais imprevisível que a União Soviética, o que nada tem de tranquilizador quando do outro lado esta gente em posições de comando e para quem a utilização de armas de extermínio massivo não é tabu.

O desastre ambulante que é o ministro Santos Silva diz-se alarmado porque a intervenção russa na Ucrânia «põe em causa a ordem mundial».

Por uma vez, excepção que confirma a regra, o senhor das Necessidades que parece ter gabinete em Washington está cheio de razão.

Há uma nova ordem mundial em gestação, de carácter multilateral, mas Portugal e os portugueses parecem condenados, pelo alinhamento internacional dos seus dirigentes e apesar da Constituição da República, a ficar amarrados à velha ordem e a políticas que se viram contra os interesses do país. Por isso lá vão mais 1500 militares portugueses para cenários envolventes de uma guerra com a qual Portugal nada tem a ver, contribuindo com mais carne para canhão ao serviço de interesses alheios, além de pagar os custos de sanções e contra-sanções de um antagonismo alimentado artificialmente.

Existe muito mais mundo para lá da Europa. Entidades de integração regional como a União Económica Euroasiática, inicialmente dinamizada pela Rússia, a Organização do Tratado de Segurança Colectiva, a Organização de Cooperação de Xangai, os BRIC (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a recentemente instituída União Comercial do Sudeste Asiático, a Iniciativa Cintura e Estrada – chamada também «a nova rota da seda» – promovida pela China são exemplos de convergências que envolvem a esmagadora maioria da população do mundo e que têm incidência crescente em regiões até muito distantes, sobretudo do imenso Sul Global ainda em défice de desenvolvimento. E que funcionam muito mais em sistemas de cooperação do que de dependência e submissão.

Esta poderosa realidade, que é inexistente para quem vive sob a tutela da informação corporativa, tem uma dinâmica inimaginável e poderá ser preponderante na economia mundial talvez mais cedo do que seria de supor.

A partir de agora a Rússia orientar-se-á muito mais para Oriente, virando gradualmente as costas ao Ocidente, o que nada terá de favorável para a Europa apesar de o comportamento irresponsável e arrogante dos dirigentes continentais fazer crer o contrário.

O fiel do equilíbrio de forças está a deslocar-se para o Oriente, a um ritmo notável, enquanto a Europa, arrastada por um militarismo sugando recursos que existem e mesmo os que não existem, mergulha cada vez mais fundo na crise económica, energética, tecnológica, ambiental e, inevitavelmente, social.

A Europa pode estar a caminhar para um destino inquietante para todos os que nela vivem: o de se transformar numa península ocidental quase irrelevante da grande massa continental euroasiática.

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