O brilhante historiador marxista, Mike Davis, faleceu em 25 de outubro após uma longa batalha contra o câncer. Militante ativo da esquerda desde seu tempo como secundarista no início dos anos 1960, Mike Davis começou escrever nos anos 1980, lançando uma série de livros pioneiros sobre a classe trabalhadora norte-americana, a cidade de Los Angeles, a história ambiental, o imperialismo, a comunidade latina nos Estados Unidos, as favelas ao redor do mundo, a gripe aviária e diversos outros assuntos.
Será lembrado como um dos mais inovadores historiadores da sua geração que via tudo – economia, política, arquitetura, música, filmes, literatura, natureza, tecnologia – como espaços de lutas de poder na sociedade. E não tinha nenhuma dúvida em que lado ele estava: com a classe trabalhadora e os oprimidos contra as estruturas econômicas, políticas e militares dos Estados Unidos e todos os brutais impérios.
Trabalhou como açougueiro e caminhoneiro na década de 1960 enquanto militava no movimento por direitos civis, nos movimentos estudantil e antiguerra e nos sindicatos. Por dois anos, foi filiado ao Partido Comunista dos Estados Unidos e militava com Angela Davis em Los Angeles, sendo expulso em 1968 por ter criticado a invasão de Tchecoslováquia pela União Soviética. Formou-se em História na Universidade de California em Los Angeles (UCLA) e ganhou uma bolsa de estudos para fazer pós-graduação na Escócia. Lá participou do grupo trotskista, International Marxist Group (IMG), junto com Tariq Ali e Robin Blackburn. Não terminou seus estudos de pós-graduação. Entre 1980 e 1986, trabalhou na revista New Left Review onde começou escrever.
Seu primeiro livro, ainda inédito em português, Prisoners of the American Dream, foi lançado em 1986. É uma extensa exploração da questão da inexistência nos Estados Unidos de um partido de trabalhadores das massas, analisando, numa série de ensaios, a economia política e o desenvolvimento dos sindicatos e partidos da esquerda desde o século XIX até o surgimento da Nova Direita na década de 1980. Louvado para sua análise sóbria de poder e classe social no maior país capitalista do mundo, o livro foi republicado várias vezes.
Mike Davis se tornou famoso com seu segundo livro, Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles, em 1990. (Ironicamente, o livro foi baseado na sua tese de doutorado que foi rejeitada na UCLA). Começa com a história da comunidade socialista de Llano, localizado perto de Los Angeles, cujos militantes tentaram montar uma alternativa comunitária entre 1914 e 1918. Os prédios da comunidade ainda existiram quando Mike Davis estava redigindo o livro e ele sugere que Llano era a “fantasma” de um futuro alternativo para Los Angeles. Outros capítulos exploram o movimento sindical na cidade, a imprensa, a máfia, a Igreja Católica e a teologia de libertação entre padres latinos e a arquitetura brutal da cidade dividida entre uma rica elite e a classe trabalhadora imigrante.
Talvez o mais importante nesse livro seja sua análise da brutalidade racista da polícia de Los Angeles, prevendo a grande rebelião multirracial que explodiria na cidade em 1992 contra a polícia. Mike Davis se tornou, em seguida, um dos mais respeitados escritores sobre arquitetura urbana nos EUA, inspirando dezenas de dissertações, teses, livros e artigos acadêmicos. Foi professor de teoria urbana em várias universidades nos anos seguintes. É notável que suas duas visitas na Universidade de São Paulo tenham sido organizadas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) e não pelo Departamento de História.
Seu próximo livro, Ecologia de medo: Los Angeles e a imaginação de desastre, publicado em 1996, abordou a história do meio ambiente. Nele, Mike Davis mostra que vários supostos desastres naturais na Califórnia – incêndios silvestres, tornados, ataques de lobos das montanhas contra pessoas, entre outros – na verdade eram consequências de ações humanas decorrentes do desfreado desenvolvimento suburbano, fake news da mídia convencional e a brutal divisão de classe, poder e raça na sociedade. No controverso capítulo, “As razões de deixar Malibu queimar”, argumenta, por exemplo, que o Estado deve gastar dinheiro para proteger os pobres imigrantes latinos que morrem regularmente em incêndios em miseráveis cortiços ao invés dos bilhões gastos para proteger bairros ricos como Malibu de incêndios silvestres. Dois dos capítulos tratam de uma análise do tema da destruição de Los Angeles na literatura e cinema de ficção cientifica.
Provavelmente, os leitores brasileiros conheçam Mike Davis mais por seu magnum opus, de 2001, Holocaustos coloniais: a criação do Terceiro Mundo, uma análise profunda de imperialismo, economia política global e fome no Brasil, na China e na Índia no século XIX e no início do século XX. Adotando uma abordagem de ecologia política com viés marxista, Mike Davis argumenta convincentemente que as terríveis fomes da época – que mataram dezenas de milhões na China e na Índia e até 500 mil no Brasil – não foram o resultado do fenômeno climático, mas sim do imperialismo inglês e as classes dominantes locais interessadas em abrir países colonizados, formal ou informalmente, ao mercado mundial. Incluindo várias imagens horríveis de pessoas famintas, Mike Davis destaca que não são ilustrações, mas “acusações”.
Holocaustos coloniais também tem capítulos extraordinários sobre a história social das fomes e a resistência dos povos. No caso do Brasil, Mike Davis se baseia no trabalho pioneiro do geografo brasileiro, Josué de Castro, autor do Geografia da fome (Todavia), mostrando que a guerra de Canudos e a popularidade de figuras como Padre Cícero têm muita a ver com a luta contra fome no imaginário popular do Nordeste.
Ao longo das duas primeiras décadas do século XXI, Davis teve uma produção profícua, publicando uma dúzia de livros, sozinho ou com colaboradores (incluindo os excelentes, Planeta Favela e O monstro bate à nossa porta: a ameaça global da gripe aviária) dezenas de artigos em revistas acadêmicas além de centenas de artigos em revistas populares sobre o meio ambiente, a pandemia, o governo Donald Trump, o Partido Democrática e lutas operárias recentes nos Estados Unidos. Seu último livro, coescrito com Jon Weiner e publicado em 2020, Set the Night on Fire: Los Angeles in the Sixties, resgata a maravilhosa história dos movimentos sociais em Los Angeles durante os anos 1960, fazendo uma tremenda contribuição empírica a história social do movimento negro, ambiental, estudantil e urbano.
Mesmo sem doutorado, ele conseguiu uma posição estável como professor universitário no Departamento de História na Universidade da Califórnia (no campus de Davis) nos meados de 2000. E nunca parou de militar, participando de manifestações e fazendo intervenções políticas nos Estados Unidos e na Europa. Foi um importante (e crítico) apoiador da campanha de Bernie Sanders nas eleições primárias do Partido Democrata. Mesmo doente, Mike Davis participou de dezenas de lives nos últimos anos, focando nas políticas de Donald Trump, a pandemia e a destruição do meio ambiente.
Numa entrevista alguns meses atrás, lamentou que iria morrer em sua cama e não “lutando nas barricadas” contra o capitalismo. Mas sua militância e vasta obra anticapitalista atestam da sua vida admirável de luta. Mike Davis, presente, sempre.