A Colômbia está entre as cinco maiores economias da América do Sul. Um país diverso, atravessado por 58 anos de conflito armado que fez vítimas nas disputas territoriais entre o exército, o narcotráfico, grupos paramilitares e as guerrilhas.

Após seis anos da assinatura do primeiro acordo de paz, o país ainda parece longe de alcançar o fim da violência. Somente nos primeiros três meses deste ano foram registrados 20 massacres com 43 mortos.

Em 2021, movimentos populares, sindicatos e estudantes organizaram durante dois meses a maior greve geral da história do país, exigindo o fim da repressão do estado e mais direitos sociais.

Em 2022, essas demandas também se expressam nas urnas. No dia 13 de março, a Colômbia elegeu um novo parlamento, com uma vitória inédita do campo progressista que pode se repetir também nas eleições presidenciais do dia 29 de maio. Quais são as razões para essa virada? E quais são as expectativas para o próximo período?

Para responder essas questões, o Caminhos para o Mundo, entrevistou Iván Cepeda Castro, senador, filósofo, defensor de direitos humanos e um dos dirigentes do partido Pólo Democrático Alternativo.

“Os jovens, as mulheres, como vem ocorrendo em outros lugares, principalmente no Chile, que é como um espelho em que estamos sempre nos refletindo, e também na Colômbia, vêm traduzindo sua indignação e rebeldia em disciplina eleitoral. Então temos uma cadeia de acontecimentos. Os educadores nos colégios e universidades vêm promovendo entre os estudantes valores democráticos, como a reivindicação de direitos. E isso se transformou em uma revolução de consciência política, que levou a um resultado como esse que vimos em 13 de março”, afirma o senador.

Iván é filho de dois militantes históricos do Partido Comunista: Yira Castro e Manuel Cepeda Vargas, que foi assassinado por paramilitares, em 1994, quando disputava a reeleição como deputado da União Patriótica. Após a tragédia, ele criou o Movimento Nacional de Vítimas do Estado, reunindo mais de 17 organizações da sociedade civil em busca de memória, verdade e justiça.

Por sofrer ameaças, viveu no exílio em mais de uma ocasião. Em 2016, foi facilitador na mesa de negociações para os acordos de paz com as FARC-EP e também nos diálogos com a guerrilha ELN.

Brasil de Fato: Você faz parte da coalizão Pacto Histórico, que venceu as eleições legislativas, elegendo 16 senadores e 25 deputados, um resultado inédito que sugere um novo momento político para a Colômbia.

Iván Cepeda: Sim, eu faria apenas um pequeno adendo. Acontece que, no dia das eleições, 13 de março, na primeira contagem entregue pelo Registro Civil Nacional, que é o órgão responsável pelos resultados eleitorais, nós aparecíamos com uma votação que nos dava esses números que você acabou de apresentar. Mas, depois desse dia, realizamos uma escrupulosa observação e supervisão do resultado e apareceram cerca de 500 mil votos que não foram registrados em 13 de março. Uma situação totalmente irregular. Os novos votos nos dão uma participação no Senado de 19 senadores e senadoras, e mais 2 pelos círculos eleitorais indígenas, ou seja, somos uma bancada de 21 pessoas no Senado e 31 representantes na Câmara. Somos então um grupo parlamentar de mais de 50 congressistas, e isso é histórico na Colômbia. Nunca antes os setores progressistas haviam tido uma bancada tão sólida no Congresso e nas duas câmaras.

Você acredita na possibilidade de fraude ou golpe antidemocrático nas próximas eleições presidenciais?

Já nessa primeira eleição do Congresso da República, nós tivemos que combater tentativas, como comentei antes, de diminuir o nosso resultado. E foi através de um dispositivo nacional, com milhares de testemunhas e centenas de advogadas e advogados, que pudemos resgatar nossa votação. Então, para além de qualquer previsão que eu possa fazer, é evidente que a elite ultraconservadora colombiana não respeita as regras do jogo democrático. Diante disso, só o que vale é o nosso esforço para que o nosso resultado seja respeitado através dos mecanismos democráticos. Ou seja, a ouvidoria eleitoral, as missões internacionais de observação e sobretudo a mobilização da cidadania para que os nossos resultados sejam respeitados. Obviamente, na Colômbia sempre existe perigo, de todo tipo. Assassinatos políticos, magnicídios e até genocídios políticos já aconteceram contra a esquerda colombiana. Embora os tempos tenham mudado, estamos em estado de alerta permanente para conseguir manter um resultado vitorioso nas próximas eleições, que serão dia 29 de maio, o primeiro turno das eleições presidenciais.

Você vê uma relação entre a greve geral de 2021 e as eleições deste ano?

Sim, sem dúvida. Inclusive ampliaria essa relação. O Acordo de Paz de 2016 na Colômbia, a mobilização gigantesca que vem crescendo a cada ano, houve mobilização em 2019 e em 2020, e uma grande greve nacional entre abril e agosto de 2021. Todos esses fatores vêm configurando um mapa político muito interessante no país. Os jovens, as mulheres, como vem ocorrendo em outros lugares, principalmente no Chile, que é como um espelho em que estamos sempre nos refletindo, e também na Colômbia, vêm traduzindo sua indignação e rebeldia em disciplina eleitoral. Isso é muito importante. Então temos uma cadeia de acontecimentos. Os educadores nos colégios e universidades vêm promovendo entre os estudantes valores democráticos, como a reivindicação de direitos. E isso se transformou em uma revolução de consciência política, que levou a um resultado como esse que vimos em 13 de março.

Você é uma das vítimas do conflito armado colombiano, que já dura uns 58 anos, certo? Um governo progressista seria algo inédito para a história colombiana com a possível vitória de Petro. Existem caminhos possíveis para a paz?

Sim, hoje mesmo (23/03), em um ato muito emocionante, foi registrada oficialmente a candidatura de Gustavo Petro e sua vice, a grande líder afrocolombiana Francia Márquez. Essa também foi uma grande notícia neste processo eleitoral, a escolha de Petro por esta mulher tão simbólica nas lutas por território na Colômbia. E o discurso do Petro foi dedicado à paz. Disse que a “política da vida”, como foi denominado nosso programa de governo, tem a paz como componente intrínseco. E, sim, é difícil falar de qualquer política que seja diferente da guerra, da violência, da “política da morte”, que foi a que predominou no país até agora. Portanto, a paz será um eixo central do programa de governo e será uma política muito ambiciosa, talvez a mais ambiciosa, no que se refere à paz, já apresentada no país. Porque pensamos em resolver todos os problemas ao mesmo tempo. Um relatório do Comitê Internacional da Cruz Vermelha publicado ontem afirma que temos seis conflitos, seis conflitos armados simultaneamente no território nacional, entre diferentes organizações, algumas insurgentes, outras do narcotráfico, ou envolvendo o Estado, que é militarista… Então é claro que, em um governo do pacto histórico, a política predominante será a busca por uma paz total, ambiciosa, integrada, totalmente inclusiva, para poder construir o bem-estar social, a democracia, a justiça social, enfim.

Você falou dos acordos de paz firmados com as FARC em 2016. Esse acordo foi implementado? Que partes foram implementadas? Se não, seria possível retomar as negociações com o ELN?

Sim, esta é uma das tarefas fundamentais que devemos retomar e aprender. E a primeira é implementar bem, de maneira integrada, o acordo de paz, que até agora só foi executado de forma parcial. E, sobretudo, não foram executados os pontos essenciais de reforma social. Estou falando do ponto nº 1 do acordo, que é a reforma agrária integral, que tem o objetivo de entregar 3 milhões de hectares ao campesinato colombiano e formalizar 7 milhões de hectares em títulos que ainda estão irregulares e que, por isso, tornam-se desculpas para expropriar agricultores. Repare que Petro é acusado de expropriar, quando os grandes expropriadores da terra, na verdade, são os grandes oligarcas latifundiários da Colômbia. Implementar então o acordo, implementar a reforma política que a paz requer, que está no acordo, e uma política diferente em sua forma de lidar com o narcotráfico. Esses três aspectos são prioritários em uma política de paz. Mas também devemos retomar o debate que já havia sido iniciado com o Exército de Libertação Nacional e que foi interrompido com a vitória da extrema direita em 2018. Portanto, nosso propósito é também fazer um acordo de paz com o ELN, que seja tão importante quanto o que foi feito com as FARC. Trazer de volta os grupos dissidentes das FARC que se afastaram do processo de paz. E realizar, não mais como negociação política, e sim como um processo de subordinação à justiça e à legalidade dos grupos ligados ao narcotráfico. Esse é um conjunto de quatro aspectos essenciais de nossa política de paz total.

Os últimos dois anos foram os mais sangrentos da década na Colômbia. Segundo o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento da Paz, o Indepaz, somente em 2021 foram registrados 96 massacres, neste ano já são mais de 20 assassinatos em massa. As vítimas são sempre as mesmas, lideranças sociais e ex-combatentes. Como podemos entender esse cenário de violência estrutural na Colômbia?

O conflito armado, a violência, a chamada “guerra contra o narcotráfico” estão intimamente ligados à forma com que o modelo econômico neoliberal, que, no nosso caso, tem características semifeudais, foi desenvolvido. Na Colômbia, a acumulação de capital e sua reprodução estão ligadas a três formas de economia que estão muito relacionadas com a violência. A usurpação de terras, como mencionei antes, essa acumulação de grandes extensões de terra entre poucos latifundiários. A extração de petróleo e de minerais como ouro e carbono. E, em terceiro lugar, o narcotráfico. São economias por si só violentas, que viveram ciclos de violência em diferentes momentos. E que engendraram esses conflitos armados. Porque o Estado colombiano não teve uma política social real que permita que, nos territórios rurais, os agricultores, que são as principais vítimas ao lado dos indígenas e afrodescendentes, possam ter suas necessidades atendidas. Portanto, essa realidade conformou a tenebrosa cifra de cerca de 9 milhões de pessoas no país que são vítimas diretas dessa violência. Entre essas pessoas, 6 em cada 10 são de origem rural, e além disso são mulheres. Então essa é a realidade que conformou esta situação e sua dinâmica é a de um círculo vicioso. O conflito escala cada vez mais, cada vez há mais violência, cada vez mais exército, mais polícia, mais intervenção militar estadunidense na Colômbia. Portanto, temos que inverter esse círculo vicioso em um virtuoso, que é o da paz, como descrevemos em nosso programa de governo.

O partido que governa hoje, Centro Democrático, representa quais elites colombianas? E por que a principal disputa está nos territórios?

Bom, o Centro Democrático, também conhecido como “uribismo”, porque é um partido caudilhista que gira em torno de Álvaro Uribe, líder da extrema direita colombiana, tem, entre seu público principal, digamos, ou seus seguidores, setores pecuaristas que praticaram essa forma de acumulação de terras que mencionamos antes. Em particular, há muitos grandes pecuaristas, pessoas que têm cabeças de gado em imensas extensões de terra. E para fins especulativos. Ou seja, mais que um fator de produção de alimentos, a terra se torna um fator de enriquecimento por especulação, pelo aumento de preços da terra. Mas eles também têm quadros de setores ligados ao aparato militar. Durante os governos de Uribe, entre 2002 e 2010, o aparato militar colombiano duplicou. Passamos a ter um exército e uma polícia de cerca de 500 mil homens, que também produzem anualmente pessoas que passam à reserva. E eles, suas famílias e seu entorno social foram influenciados por essa ideologia de extrema direita. O mesmo aconteceu com setores ligados ao fundamentalismo religioso, setores que não querem que haja uma ampliação de direitos no país em relação às mulheres, às chamadas “minorias sexuais”, e, em geral, aos setores mais discriminados. Mas por que foi produzida essa violência nos territórios rurais? Porque é lá que está a riqueza, tanto mineral quanto energética, além das terras, a biodiversidade e é exatamente nesses territórios que o Estado colombiano veio praticando uma política unidimensional, que é a da violência, da presença militar, e não a da presença social do Estado, como devia ter sido.

A Colômbia é o maior produtor de cocaína do mundo, enquanto os maiores consumidores são os EUA. Curiosamente, os EUA têm sete bases militares na Colômbia, além de participar de programas de erradicação de substâncias ilícitas ligados à DEA, não é mesmo? Por que existe essa estrutura na Colômbia? Se a Colômbia possui essa estrutura, conta com a DEA e todo o aparato militar dos EUA, por que mesmo assim o tráfico de drogas só aumenta no país?

É exatamente isso que nós chamamos de política de morte e economia de morte. Porque sua configuração e forma de ser implica inexoravelmente um círculo que reproduz o narcotráfico, a violência, a militarização, a presença estrangeira. É uma política que vem fracassando há 50 anos. E de todas as formas possíveis, me desculpe. Economicamente, não diminuiu o consumo nem a produção, muito pelo contrário, a cada ano vemos um aumento da produção de cocaína, um aumento de organizações criminosas ligadas ao narcotráfico, uma maior criminalização dos agricultores que cultivam coca e uma impunidade absoluta sobre os verdadeiros donos do negócio, que quase sempre estão ligados ao poder político, aos grandes círculos financeiros, onde se lava o dinheiro desse negócio para setores que impulsionam o aparato militar. Então a única coisa que essa política conseguiu nos últimos 50 anos foi destruir comunidades e a economia do país, lançar milhões de agricultores a essa economia ilícita e, na verdade, fortalecer o narcotráfico. Uma política que fracassou, evidentemente, tem que ser substituída. Para alguns setores, essa mudança não é interessante, porque dessa política deriva um imenso poder. Há setores que estão muito ligados ao narcotráfico e que são vistos como setores muito respeitáveis na Colômbia. Costuma-se dizer que as guerrilhas daqui vivem do narcotráfico, organizações como cartéis da droga, como o de Pablo Escobar, etc. Mas os megacriminosos de colarinho branco são sempre mantidos na sombra, que são grandes políticos, clãs mafiosos da política, clãs dentro das Forças Armadas, ligados ao narcotráfico, e inclusive a própria intervenção estrangeira. Vemos que a presença dos órgãos de inteligência dos EUA não resolve o problema, pelo contrário, o agrava. Na Colômbia, muitas pessoas são extraditadas todos os anos por causa do narcotráfico, mas isso é uma política unilateral. Outro dia tive um debate no Congresso em que perguntei ao ministro da Justiça: “Quantos cidadãos estadunidenses estão em nossas penitenciárias por pedidos de extradição feitos por nós aos EUA?”. Ele disse: “Senador, não tenho a cifra neste momento, mas vou conseguir”. Eu disse: “Não se dê ao trabalho. A cifra é zero”. Não há um único cidadão estadunidense, onde está uma parte responsável por esse grande negócio, que tenha sido extraditado para a Colômbia. Então há unilateralidade, falta de soberania e esse círculo, novamente, de militarização, guerra em ascensão e aumento do narcotráfico.

A Colômbia e a Venezuela já foram um único país. No entanto, desde sua origem, com Bolívar e Santander, há um histórico de rivalidade que se repete até hoje. Os dois países militarizaram suas fronteiras e romperam suas relações diplomáticas. Por que é importante para os EUA, nosso assunto anterior, e para a direita latino-americana manter as tensões e rivalidades entre os dois países?

Bom, porque, nesse contexto, essa desintegração, essa tensão nas relações, que poderia levar até a um confronto militar, favorece a intervenção estrangeira em nossa política. Parte do programa do pacto histórico é restabelecer as relações políticas, diplomáticas e econômicas com a Venezuela, respeitar a soberania de cada um dos nossos países e o princípio de autodeterminação de povos e governos. Exigimos que nossa política seja feita pelos colombianos, mas também devemos respeitar a política e os problemas que outros países, como a Venezuela, podem ter. Mas esse raciocínio, que em outras épocas fazia sentido, hoje faz mais ainda. Porque no contexto mundial atual é evidente que não estamos voltando à Guerra Fria, mas sim começando uma era de “guerra morna”, que tende a “esquentar” no planeta todo. Vemos com muita preocupação os efeitos da intervenção da Rússia na Ucrânia, porque isso irradia um novo contexto internacional que francamente não nos agrada. Vemos que as tensões estão aumentando. Esperamos que, com a vitória de um governo progressista no Brasil e um governo progressista na Colômbia, é o que espero, possamos gerar um eixo com outros países, como México, Argentina e Chile, para conquistar uma política continental de paz e de integração, que é o que queremos. Não mais esse enfrentamento absurdo. Em defesa de modelos econômicos e ideológicos que possam encontrar, de alguma maneira, conciliação em fórmulas que respeitem o princípio de soberania.


Caminhos para o Mundo tem duração de 30 minutos e vai ao ar quinzenalmente, às terças-feiras, sempre às 20h, nos canais do Brasil de Fato e da TVT no YouTube.

Edição: Arturo Hartmann

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