Em 2018 já nos perguntávamos como as forças de extrema direita estavam chegando ao poder pelas vias eleitorais. O que acontecia naquele momento e o que segue acontecendo, não apenas no Brasil, para que isso ocorra? A mera viabilidade eleitoral do então candidato Jair Bolsonaro era algo inserido numa lógica muito mais estruturante e sistêmica do que apenas uma leitura tradicional da nossa realidade pudesse explicar.

O Brasil é mais um dos cenários da onda ultraconservadora que atingiu Estados Unidos, Reino Unido, Polônia e Hungria, não só como emergência de um populismo de extrema direita que ganhou vigor internacional, como também de corrosão das estruturas democráticas “por dentro”, sem a ruptura de um golpe. Trata-se de forças contemporâneas de extrema direita que, em democracias liberais, chegam ao poder pelas urnas. O espectro da direita ultraconservadora seguirá rondando as eleições em Portugal, França, Hungria, Estados Unidos e Filipinas.

Para entender possíveis rumos que partidos, movimentos e líderes de extrema direita tomarão, é fundamental compreender suas origens e singularidades. Recorro aqui a uma pensadora central para essa compreensão, a filósofa e cientista política Wendy Brown, professora da Universidade da Califórnia, Berkeley. Seus trabalhos sobre as origens da extrema direita podem ser incorporados ao debate brasileiro, especialmente no contexto das eleições deste ano.

Se autores como Pierre Rosanvallon, na França, ou André Singer, aqui no Brasil, falam em “desdemocratização” para tratar do avanço do populismo de direita combinado com autoritarismo, Brown se refere ao que chama de “política antidemocrática”, um tipo de política que emerge das “ruínas do neoliberalismo”, para usar a feliz expressão convertida num dos seus principais livros.

O ponto central do seu raciocínio é o de que o triunfo exacerbado do neoliberalismo resultou na deformação da própria utopia neoliberal. No momento em que ele triunfa e produz seus maiores efeitos, ele dá errado. Dos escombros – das ruínas –, portanto, dessa sociedade que o projeto neoliberal não conseguiu desmantelar por completo surgem as atuais deformações contra o próprio projeto, e que estão na base de governos antidemocráticos e de uma política antidemocrática de forma mais ampla.

Como lembra Brown, o neoliberalismo buscava habilitar, ao mesmo tempo, o mercado e a moral para governar e disciplinar indivíduos, maximizando a liberdade. Nas suas palavras, “indivíduos e famílias seriam pacificados politicamente pelo mercado e pela moral, e subentendidos por um Estado autônomo e com autoridade, mas despolitizado”. Vivemos há décadas sob essa lógica em muitos países.

“o neoliberalismo buscava habilitar, ao mesmo tempo, o mercado e a moral para governar e disciplinar indivíduos, maximizando a liberdade”

No Brasil, o debate se concentrou em grande parte sobre as medidas econômicas resumidas no chamado Consenso de Washington, que incluíam o receituário de recomendações aos países da América Latina: desregulamentações, reformas fiscais restritivas, abertura comercial e redução do Estado. Mas vão além disso e dizem respeito também a princípios, práticas, políticas e formas de governar – era uma ordem, repita-se, de natureza financeira e também moral. Não era, ou é, apenas uma política, mas uma ética, nos lembra Brown. Passando por várias dimensões da vida, não apenas a econômica.

Como definiu um dos expoentes do neoliberalismo, o economista e filósofo austríaco Friedrich Hayek, a partir da lógica de mercado convém moldar o Estado, a moral e a lei. Onde havia solidariedade social e igualdade, famílias passam a ser responsáveis pela educação moral e social dos indivíduos. Nesse contexto, a moralidade tradicional tem um lugar central. Mercados e moral estão enraizados numa ontologia comum – um depende do outro.

Estamos falando de um capitalismo exacerbado, ou desenfreado, desregulado, com liberdade e autonomia total dos mercados – para muitos, essa autonomia em tal nível foi a responsável pela crise financeira de 2008. Tudo isso conjugado com a promoção de valores familiares, em especial valores cristãos, ocidentais e brancos. Do auge da Era Reagan-Thatcher, nos anos 1980, até o fim do século XX e início do século XXI, viveu-se uma onda devastadora de favorecimento do capital, desregulamentação do capital financeiro, repressão do trabalho, demonização do estado de bem-estar social, ataque às igualdades e maximização das liberdades individuais.

Esse projeto – econômico, social e político – não conseguiu, nos termos da análise de Brown, desmantelar por completo o que pretendia. No lugar do “sonho neoliberal”, portanto, sobram escombros e ruínas. Surgem daí as atuais deformações que estão na base de uma espécie de sustentação ampla de governos e práticas antidemocráticas. De onde veio isso? Surgiu de repente? Para onde estávamos olhando antes de 2018?

Observando a realidade norte-americana, a autora vai dizer que, por dentro de uma democracia liberal capitalista, emerge algo que deveria lhe parecer oposto: nacionalismo, conservadorismo cristão, racismo e masculinismo branco. No caso brasileiro, muitos desses elementos são estruturantes da constituição de nossa democracia inacabada de longa data.

A nova direita se assentaria aí, na reação às ruínas que todo esse projeto gera, e segue contra ele mesmo. As respostas, portanto, viriam em forma de restrição do alcance do poder político democrático, expansão do alcance da moralidade tradicional, um programa político-moral que visa proteger as hierarquias tradicionais e o mercado, negando a própria ideia do social e, por fim, doses importantes de niilismo e ressentimento.

Como medidas e políticas defendidas pelo neoliberalismo não entregaram o que prometeram, restava encontrar culpados. Nas palavras de Brown: “Isso significava gritar contra o Estado Islâmico, contra os imigrantes ilegais, contra os mitos acerca das ações afirmativas e, acima de tudo, culpar o governo e o estado social pela catástrofe econômica, sorrateiramente transferindo a culpa de Wall Street para Washington, porque o governo limpava a lambança resgatando bancos, enquanto deixava as pessoas comuns na mão.”

Na terra arrasada pós-2008 vimos emergir uma massa de descontentes, fundamentalmente de classe média, branca e cristã. Um vasto grupo antes em ascensão perde renda, aposentadorias, propriedade privada e emprego diante de uma economia alicerçada no capitalismo financeiro, rentista, mas em ruínas. O castelo de cartas desmoronava, enquanto essa mesma massa de descontentes era bombardeada por mensagens, comentários e análises de direita – nas tevês e nas redes sociais.

Brown sintetiza o problema recorrendo ao binômio “o bispo e o banqueiro”: de um lado, o “bispo” (valores familiares e morais); de outro, o “banqueiro” (mercado, autonomia). Nem um nem outro davam conta de apaziguar tamanho descontentamento e precarização das condições materiais. Restava, insista-se, culpar migrantes, grupos com pouca representação econômica, social e política ou beneficiários de políticas de inclusão. A reação ao neoliberalismo ganhou contorno “rebelde, populista e repulsivo”, segundo suas palavras. Emergiu o novo populismo de extrema direita. Ressentido, rancoroso, raivoso e vingativo.

Uma das características desse populismo de direita, ou dessa política antidemocrática, é a política permanente de vingança: atacar aqueles acusados de destronar as estruturas que prevaleciam – as feministas, os multiculturalistas, os globalistas e os ambientalistas. Qualquer semelhança com o governo de Jair Bolsonaro não será mera coincidência. Outra característica é um populismo de resgate do passado, um passado idílico para alguns, onde existiam ordem, controle, protagonismo. Ou, nas palavras de Brown, “um passado mítico de famílias felizes, íntegras e heterossexuais, quando mulheres e minorias raciais sabiam de seus lugares, quando vizinhanças eram ordeiras, seguras e homogêneas, e a heroína era problema dos negros, o terrorismo não estava em solo pátrio e quando a cristandade e branquitude hegemônicas constituíam a identidade, o poder e o orgulho manifestos da nação e do Ocidente”.

Líderes populistas de direita, a partir dos anos 2010, se tornariam os defensores do que sobrou dessas bases e prometeriam restaurá-las. Ou o que dizer de slogans e ideias-forças típicas desses líderes, como “Make America Great Again” (EUA), “França para os Franceses” (França), “Take Back Control” (Brexit) e “Nossa cultura, nosso lar, nossa Alemanha” (Alemanha). Como bem sintetiza Marina Lacerda, cientista política brasileira e estudiosa do trabalho de Brown, “se os homens brancos não podem ser donos da democracia, não haverá democracia. Se os homens brancos não podem governar o planeta, não haverá planeta”. Síntese que facilmente encontra eco na realidade brasileira.

O que explicaria a adesão das camadas populares a esse projeto? Como Brown sustenta, e Marina sintetiza, para aqueles que se sentem “deixados para trás”, os valores tradicionais forneceriam proteção contra os deslocamentos e perdas que décadas de neoliberalismo geraram para as classes trabalhadoras e médias. O que a socióloga Christina Vital chama de “retórica da perda” e a cientista política Flávia Biroli de “moralização das inseguranças”. Para Brown, por exemplo, os evangélicos se identificaram profundamente com Donald Trump devido à experiência compartilhada de serem desprezados pelas elites culturais e atacados por forças mundanas, particularmente aquelas vindas da academia. É uma associação direta entre evangelismo e ressentimento, entre o evangelismo e o anti-intelectualismo, no caso norte-americano.

A promessa de recuperar um mundo que não existe mais – mas que sempre existiu para uma parcela da população – cria uma base extraordinária para o autoritarismo: um mundo estável, seguro, homogêneo, organizado por valores cristãos e patriarcais. Como Trump, Bolsonaro aproveitou muito bem esses anseios em meio a ruínas. Trump não foi reeleito, mas o trumpismo não foi derrotado após a eleição de Joe Biden. E no Brasil, como será?


 

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