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Marcha da Cúpula dos Povos pela Democracia em Los Angeles - Divulgação

Em entrevista recente, perguntaram a Brian Nichols, secretário de Estado adjunto dos EUA para assuntos do Hemisfério Ocidental, a questão que está na cabeça de todos ao pensar na Cúpula das Américas, a ser realizada na cidade californiana de Los Angeles em julho deste ano: Cuba, Venezuela e Nicarágua serão convidadas? Nichols respondeu com um “não” sem hesitação ou equívoco.

Falando em nome do Presidente Joe Biden, ele acrescentou ainda que países cujas “ações não respeitam a democracia” – visão que os Estados Unidos têm sobre esses três países, dentre outros – “não serão convidados”. O comentário aparentemente improvisado de Nichols, dito com a usual arrogância das autoridades estadunidenses – e que classificou os três países como “regimes que não respeitam a democracia” – chocou toda a região de uma maneira que os Estados Unidos não esperavam.

Por toda a América Latina, a reação foi imediata. Líderes como o presidente mexicano Andrés López Obrador, o presidente boliviano Luis Arce e a hondurenha Xiomara Castro, bem como vários outros líderes de Estado da Comunidade Caribenha (CARICOM, na sigla em inglês), incluindo o primeiro-ministro de Antigua e Barbuda, Gaston Browne, e seu homólogo de Trinidad e Tobago, Keith Rowley, todos se pronunciaram que não irão participar da cúpula caso seja mantida a exclusão de Cuba, Venezuela e Nicarágua. A CARICOM pediu por uma cúpula que assegure “a participação de todos os países do hemisfério”.

A insistência de Biden em continuar a política de exclusão e agressão dos Estados Unidos contra a América Latina fez de sua cúpula um fracasso antes mesmo de começar. Afundada em controvérsias e críticas, a administração Biden não foi capaz de construir consenso sobre qualquer agenda comum devido aos padrões duplos que cria.

Enquanto os EUA podem já ter seguido em frente, ainda estão frescas as memórias de golpes recentes e tramas intervencionistas arquitetadas pelo governo estadunidense na região. Tanto os EUA quanto a Organização dos Estados Americanos (OEA) ajudaram a conceber o golpe na Bolívia em 2019 que derrubou o governo democraticamente eleito.

Não há Américas sem Cuba

Desde sua concepção, a cúpula tem sido encarada com ceticismo por progressistas de toda a América Latina devido ao papel desproporcional ou, mais precisamente, dominador desempenhado pelos Estados Unidos e pela OEA em relação a convites, agenda e visão. Contudo, parece que este ano os Estados Unidos subestimaram a importância das mudanças políticas na região e seus impactos na legitimidade política do país.

Os EUA não parecem ter previsto quaisquer desafios à sua liderança na cúpula, mas a reação contra a hegemonia do país não é surpresa para a maioria dos latino-americanos e daqueles ao redor do mundo que têm acompanhado a política da região ultimamente. Desde a cúpula de 2018, o mapa político passou por transformações radicais. Não somente governos progressistas superaram o número de governos autoritários na região, como também muitos deles surgiram precisamente de uma profunda rejeição aos governos e políticas apoiadas pelos EUA, assim como as condições que elas criam para o povo.

Por toda a região, países cujo setor público foi prejudicado por décadas pelas políticas neoliberais impostas pelos EUA e Fundo Monetário Internacional (FMI) viram suas sociedades e economias devastadas durante a pandemia de covid-19. Segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e Caribe (CEPAL), por conta da pandemia de covid-19, a taxa de extrema pobreza na região passou de 13,1% em 2020 para 13,8% m 2021, representando um retrocesso de 27 anos. Das mais de 2,7 milhões de mortes por covid-19 no mundo, as Américas respondem por 43,6% delas, apesar de possuir apenas 12% da população mundial.

Os pontos fora da curva nessa tendência geral de crise econômica e emergência humanitária foram Cuba, Venezuela e Nicarágua, que apresentaram algumas das taxas mais baixas de mortes por covid-19 tanto no comparativo com outro países da região quanto ao comparar-se com países fora das Américas. O resultado é consequência de suas estratégias abrangentes e, acima de tudo, por colocarem a saúde e bem-estar de seus cidadãos acima dos lucros.

Esta política se estendeu para além de suas fronteiras nacionais. Desde março de 2020, Cuba já estava enviando brigadas médicas para outros países latino-americanos e também para fora da região em apoio às suas respostas à covid-19. Com o desenvolvimento de cinco vacinas cubanas contra o vírus, a ilha tem trabalhado com outros países do Sul Global para distribuir ciência e tecnologia sobre o imunizante com o intuito de promover sua produção localizada e distribuição. Enquanto isso, as empresas farmacêuticas e de biotecnologia dos Estados Unidos, como a Pfizer e Moderna, estão registrando recorde de lucros. No ápice da pandemia no Brasil, a Venezuela enviou galões de oxigênio para a cidade de Manaus, que ficou sem suprimento desse recurso vital, apesar de pedir ajuda ao governo federal, sob a liderança do presidente Jair Bolsonaro.

“A maioria das pessoas nas Américas rejeitam essa moral hipócrita e a premissa de que os EUA têm o direito de decidir quem participa de qual fórum e com quem”.

Tornou-se óbvio que os países da região têm tudo para ganhar ao manter cooperação e parcerias com os países que os EUA declaram como seus inimigos.

Democracia para quem?

Para justificar suas políticas agressivas contra Cuba, Venezuela e Nicarágua, os EUA usam como desculpa as supostas violações de direitos humanos e o que denominam como ameaças que estes países representam à democracia.

Todavia, muitos começaram a se perguntar que tipo de democracia existe em um país onde 1 milhão de pessoas morreram devido a covid-19, 2,2 milhões estão encarceradas – o que representa mais de 20% de toda a população em prisões no mundo –, onde a polícia mata uma média de três pessoas todos os dias (sendo que os afro-americanos têm 2,9 vezes mais chances de serem assassinados pela polícia quando compara-se com a população branca) e onde US$ 801 bilhões são gastos com as Forças Armadas (os EUA respondem por pelo menos 38% de todo o gasto militar global).

A maioria das pessoas nas Américas rejeitam essa moral hipócrita e a premissa de que os EUA têm o direito de decidir quem participa de qual fórum e com quem. Foi por isso que uma coalizão de mais de cem organizações de toda a região se juntaram para organizar a Cúpula dos Povos pela Democracia como oposição ao evento impropriamente chamado de “Cúpula das Américas”.

A Cúpula dos Povos carrega o legado de movimentos contra o capitalismo neoliberal e o imperialismo estadunidense. Eles têm organizado “contra-cúpulas” todas as vezes que os Estados Unidos organizam sua Cúpula das Américas.

A Cúpula dos Povos será realizada em Los Angeles, Califórnia, entre os dias 8 e 10 de junho. Seu objetivo é reunir as vozes de pessoas às quais os EUA prefeririam silenciar e excluir. Organizadores imigrantes em Los Angeles subirão ao palco com trabalhadores rurais sem-terra brasileiros para discutir suas visões de democracia para todos. Organizadoras feministas da Argentina a Nova York compartilharão estratégias de como lutar pelo acesso ao aborto e combater os ataques reacionários da direita a mulheres e pessoas LGBTQ.

Esses tempos sem precedentes pedem por mais cooperação e menos exclusão. Apesar de, infelizmente, o governo dos EUA também negar vistos para 23 pessoas da sociedade civil que integravam a delegação cubana na Cúpula dos Povos, as ligações entre o povo cubano e o estadunidense são inquebrantáveis. E apesar de seus melhores esforços, os EUA não podem silenciar as aspirações populares.

Para as Américas, que estão na iminência de tempos de mudança, a Doutrina Monroe acabou.


 

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