A Colômbia se prepara para entrar na reta final de seu calendário eleitoral de 2022 com a eleição presidencial prevista para 29 de maio, na qual mais de 38 milhões de colombianos serão chamados a participar de um processo cujo favorito para se tornar o próximo presidente é, pela primeira vez, de um partido de esquerda.
De acordo com pesquisa das empresas Guarumo e EcoAnalítica, o candidato de esquerda Gustavo Petro tem 36,4% das intenções de voto, seguido por Federico (Fico) Gutiérrez com 30,6% e Rodolfo Hernández com 12,4%. Um possível segundo turno está previsto para 19 de junho. Enquanto isso, espera-se que o novo presidente do país sul-americano tome posse em 7 de agosto.
Em um contexto em que o resultado das eleições legislativas de 13 de março, que deu às forças políticas de esquerda, unidas na coalizão conhecida como Pacto Histórico, uma maioria de votos histórica, o que representou um acontecimento histórico e um retrocesso para a direita que governou o país nos últimos 20 anos, as eleições presidenciais poderiam pôr fim ao domínio da direita e configurar a Colômbia em um modelo que ganha impulso em uma nova onda de política de esquerda latino-americana.
Depois de Chile, Peru e Honduras em 2021, e com o Brasil com chances de ver o retorno de Lula em outubro de 2022, a Colômbia poderia optar pelo candidato de esquerda Gustavo Petro, economista, ex-guerrilheiro e ex-prefeito de Bogotá, que concorre este ano à sua terceira candidatura presidencial. Em 2018, ele perdeu para o atual presidente Iván Duque.
O pleito que elege o novo mandatário colombiano ocorre em um cenário marcado pelos protestos sociais de 2021, o assassinato de ativistas e defensores do meio ambiente, o não cumprimento dos Acordos de Paz, um conflito armado ainda latente em áreas disputadas envolvendo o exército, grupos paramilitares e guerrilheiros, assim como o tráfico de drogas, a crise migratória, uma economia frágil e a pandemia de covid-19.
A questão, para um possível governo de Petro, é se seria possível a ele levar adiante uma agenda de esquerda em um país que nunca seguiu este rumo. A nova “maré rosa”, com a volta dos governos de esquerda ao poder, tem a atenção da opinião pública colombiana devido ao papel que poderia desempenhar nas relações, na geopolítica e na integração regional do continente, da qual a Colômbia tem permanecido até agora à margem.
Brasil de Fato conversou com três ativistas que fazem parte de movimentos sociais de base na Colômbia para analisar os desafios de derrotar uma longa trajetória de direita, bem como para avaliar a relevância das eleições para a América Latina e o Caribe.
É possível pensar uma agenda de esquerda em um estado tradicionalmente de direita?
“Vai ser um desafio monumental por causa das condições em que o país se encontra. Temos um país imerso em todos os tipos de crises. Há uma crise econômica, há uma crise social, há uma crise cultural, há uma crise ambiental, há crises demais e este governo vai receber tudo isso”, enfatiza a ativista afro-colombiana Charo Mina Rojas, membro do Processo das Comunidades Negras (PCN).
Segundo alguns analistas, estas eleições serão as primeiras da história recente da Colômbia em que seu padrão está mais em sintonia com o que está acontecendo na América Latina e no Caribe. Ou seja, é a primeira vez que temas como o Uribismo versus Anti-Uribismo ou questões como o conflito armado ou a guerrilha não estarão no centro da disputa. Ao invés disso, slogans como desigualdade social, educação, corrupção, violência policial ou a criminalização de protestos estarão em sintonia com as recentes demandas regionais e que se tornaram evidentes na Greve Nacional de 2021.
Isto mostra que o sentimento do voto colombiano será influenciado mais pela necessidade de mudar o “establishment”, algo que definiu a política na Colômbia recentemente, ou seja, a necessidade de apostar em algo novo.
“As organizações sociais estão conscientes de que, se Petro vencer, este não será um governo que nos permitirá grandes transformações, mas nos dará outras condições para o desenvolvimento de uma política para o desenvolvimento de projetos alternativos, de projetos revolucionários, e isto é importante ressaltar”, diz Pilar Lizcano da equipe de porta-vozes do Congresso dos Povos, um movimento político e social que reúne diferentes setores e atores sociais do país.
“Mais do que pensar se será um governo de esquerda, embora Petro venha de um setor de esquerda e muitas pessoas ao seu redor venham da esquerda, se espera que seja um governo que apresente alternativas ao que existiu até agora, que quebre alguns paradigmas, mesmo os da esquerda”, acrescenta Mina.
A ascensão da esquerda coincide com a erosão da direita, encarnada no governo de Iván Duque, cujo índice de desaprovação é de cerca de 70%, número que enterrou o tradicional partido Centro Democrático, do qual o ex-presidente Álvaro Uribe é a força motriz.
Este descontentamento social se reflete no fato de a Colômbia ser um dos países mais desiguais da América Latina. De acordo com o último relatório apresentado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o país é o terceiro mais desigual da região, com um dos mais altos níveis de pobreza, desigualdade de renda e informalidade no mercado de trabalho.
De acordo com a organização, as famílias mais vulneráveis do país que sofreram os golpes mais duros da pandemia teriam que passar pelo menos 11 gerações para escapar da pobreza e alcançar a renda da classe média, um número que faz o retrato das condições nas quais o novo governo assumirá o país.
“Há um número significativo de eleitores procurando uma mudança, ou seja, há uma vontade, uma consciência social e política com base em tudo o que aconteceu na Colômbia e no que tivemos que viver, o que se refletiu na greve. É hora de mudar, e essa consciência e toda essa força vem principalmente dos jovens […] que não estavam votando nas últimas eleições, mas que vão votar nesta”, diz Mina.
Desafios à frente
“A administração do país certamente será muito difícil para Gustavo Petro se ele vencer. [Nunca] tivemos a oportunidade de ter um governo progressista na história da Colômbia, portanto será um grande desafio”, comenta Lizcano.
Diante da possibilidade de uma força política de esquerda ter uma chance real de chegar ao poder, os entrevistados concordam que muitos desafios estão pela frente, incluindo enfrentar uma oposição vociferante de uma direita enfurecida e um setor empresarial e econômico que verá seus privilégios de classe ameaçados.
“A oposição vai desempenhar um papel de impacto ao se manter ligada, observando cada pequeno detalhe […] sabendo que eles deixaram o país em ruínas.”
A tendência, de acordo com Mina, será a direita associar um possível governo de Petro a governos de esquerda como estratégia de desestabilização. “Eles serão os primeiros a dizer que em quatro anos Petro vai mudar o país e vão usar o sofisma de que vamos nos tornar outra Venezuela para apontar qualquer coisa que já existia como um fator de fracasso do governo”, diz Mina
“A ala direita tem uma máquina muito forte, bem armada e organizada, com muitos tipos diferentes de recursos, desde abundantes recursos financeiros a todos os seus próprios recursos para desinformar, manipular e corromper o processo”, afirma.
Outro desafio é que embora o Pacto Histórico, coalizão que reúne 17 partidos e movimentos sociais e populares, tenha obtido uma representação sem precedentes no Congresso (tomará posse em 20 de julho), essa vitória não garante tranquilidade a um possível governo Petro, já que teria que lidar com um Congresso no qual a direita, fragmentada em seis partidos, continuará sendo a maioria.
“O Pacto Histórico não tem força suficiente no Senado e no Congresso para mudar os problemas estruturais que existem no país, que não é apenas corrupção, mas também o modelo econômico proposto pelas elites políticas e econômicas do país”, diz Cristian Leyva, um ativista estudantil exilado no País Basco.
“Ele provavelmente terá que fazer alianças muito desconfortáveis” com o setor empresarial ou com alguns partidos, opina Lizcano, para reativar uma economia atingida, entre outros fatores, pelo impacto da pandemia da covid-19, mas também em um contexto global no qual a onda inflacionária está aumentando rapidamente o custo de vida da população, o que está colocando os governos em dificuldades, especialmente em regiões como a América Latina.
O discurso racista é outro desafio a ser enfrentado
“Que a Francia tenha chegado até aqui significa para o povo do movimento negro, negros em geral na Colômbia e na região, também um desafio […] Antes de mais nada, é algo que procuramos de diferentes maneiras há vários séculos, desde o momento em que fomos trazidos para cá escravizados e começamos a procurar formas de nos libertarmos, estávamos procurando ocupar um lugar de humanidade diferente daquele que ocupávamos quando fomos trazidos para cá”, diz a ativista afro-colombiana.
Francia Márquez, ativista ambiental e defensora dos direitos das comunidades indígenas e afro-colombianas, parte da chapa do Pacto Histórico, se tornaria a primeira vice-presidenta negra em um país onde esta população representa quase 10% do total, mas é historicamente marginalizada.
“Desde o momento em que ela disse ‘estou farta, cansada de que os jovens sejam mortos, cansada desta situação e quero presidir este país’, as pessoas reagiram imediatamente porque ela representa, e as pessoas a veem como alguém que finalmente vem do mesmo lugar […] as pessoas que ninguém olha, que ninguém escuta, as pessoas que colocaram seus corpos em tudo”, sublinha Mina sobre o simbolismo de Márquez não só para a realidade afro-colombiana, mas também para a realidade afro-latino-americana e afro-caribenha.
O desafio, segundo a ativista, será garantir a continuidade das lutas desta população que hoje permite que uma mulher negra possa ser a vice-presidenta de “um país conservador, racista, patriarcal, capitalista e neoliberal”.
Quase 171 anos após a abolição da escravidão no país cafeeiro, as raízes deste sistema permanecem, sendo esta população a mais afetada pelos piores indicadores sociais e econômicos, além de ser excluída de áreas como a participação política.
Por esta razão, “permanecer organizado” será uma das diretrizes para continuar “caminhando em busca de transformações consideráveis e importantes”, diz o ativista em face de uma ultra-direita que pode não aceitar bem perder e que pode exacerbar “ódio, violência, fobias de todos os tipos e não só e exclusivamente contra os negros, mas contra tudo que representa essa alteridade”.
Além disso, a colocação de Francia na vice-presidência seria apenas mais um passo. “Ela vem dos movimentos, da base, representa o povo, mas só vamos resolver [nossa] vida como negros, o racismo e tudo o que passamos em nosso caminho de autodeterminação, com organização política com clareza e consciência, com total apoio a esta pessoa, mas também com controle político”, continua.
O papel da Colômbia na integração regional
“Pela primeira vez a Colômbia não está fora de sintonia com o que está acontecendo na América Latina”, diz o porta-voz do Congresso dos Povos sobre o distanciamento que tem caracterizado o país sul-americano em suas relações com outros países da região.
A Colômbia desempenha um papel fundamental não só por sua localização geográfica para as relações Norte-Sul, mas também por ser o aliado estratégico mais importante dos Estados Unidos, tanto em questões políticas e econômicas, como também em cooperação e intercâmbio financeiro e militar.
Neste sentido, a proximidade das relações bilaterais com os EUA será, para os movimentos sociais, um dos fatores-chave que marcarão a dinâmica política, o desenvolvimento e a autonomia da região.
“A aliança com os Estados Unidos é um desafio, porque temos que repensar isso. Temos que olhar para isso de uma maneira diferente, temos que ter uma posição muito forte, muito clara sobre várias coisas que já figuraram no espectro das relações com este país. O papel e o lugar que este governo tem desempenhado no posicionamento da Colômbia em sua relação com os Estados Unidos e como a Colômbia deve jogar geo-estratégicamente nesta política internacional, de acordo com a política imperialista, a política dominante dos Estados Unidos […] esta situação é um enorme desafio, porque há muito para ver, mesmo porque a Colômbia tem uma enorme dependência econômica e militar dos Estados Unidos“, diz Mina.