O conflito russo-ucraniano e antes as sanções aplicadas contra o Irã ou qualquer outro inimigo contundente do império estadunidense e seu projeto colonial de Apartheid na Palestina Ocupada, demonstram de forma direta que nenhum agente em escala global ou continental pode estar confortável sob o risco de sofrer sanções e desligamento do Sistema Swift. A diversificação de investimentos, a busca constante por melhores condições nos fatores de troca e as garantias para os projetos estratégicos são três fundamentos válidos para qualquer país com vontade soberana. Logo, trata-se da admissão da derrota quando diante do problema, caso os tomadores de decisão e as instituições centrais dos países não tomam posição diante do evidente desafio.
A fusão entre o capitalismo que irradia do centro para o planeta sob a hegemonia do capital financeiro e o poder político-cultural-militar e cibernético com os Estados Unidos à frente tem ao menos duas constâncias. Uma destas é que a “globalização serve” quando é centralizada pelos lobbies que operam em Washington junto ao deep state anglo-saxão e sionista. Se estes se veem ameaçados de alguma forma, mudam a regra do jogo e não têm pudor nenhum em ferir primeiro os aliados de primeira ordem. A outra constância é do conflito distributivo. Cada vez que a luta social consegue distribuir minimamente dentro de alguma forma “madura” de capitalismo, o centro do sistema faz o possível para implodir estas bases, sem nenhum tipo de remorso em condenar a fome, miséria e o endividamento eterno sua própria população.
Na década de ’70, uma das razões tomadas para acabar com os “trinta anos gloriosos do capitalismo sob a planificação socialdemocrata”, foi o enorme poder de compra dos salários e a massa sindicalizada no coração do ocidente europeu. Os PIBs dos países membros da OTAN eram quase meio a meio, com o peso do capital equiparado com o do trabalho, incluindo as garantias de políticas públicas e dos direitos sociais amplos. A Europa dividia poder entre a massa assalariada e as oligarquias do pós-Guerra e isso foi sendo demolido na Era Thatcher-Reagan. Outro alvo do uso da moeda como arma de guerra contra os aliados ocidentais eram as amplas margens dos chamados eurodólares e o peso do iene japonês nos anos 1970. Na década de ’90, o alvo contra o aliado foi a Coreia do Sul, justamente quando estava a colher os louros de seu processo de industrialização, oriundo de cinco planos quinquenais e com estrito controle de capitais.
Exemplos não faltam e os sintomas ocorrem novamente no século XXI, na busca por saídas para a farsa com nome de crise ocorrida no coração do capitalismo ocidental entre os anos de 2007 e 2010. O jornalista Luis Nassif, especializado em economia real e governo, nos apresenta o tema da abertura de espaços próprios para além da tirania do dólar. Estamos diante de uma constante. A abertura de zonas de comércio, trocas, reservas e diplomacia econômica em escala continental ou global, e a reação dos Estados Unidos. Se acompanharmos as medidas tomadas no primeiro governo Nixon, abordadas por este que escreve nesta mesma publicação, veremos que sempre que há uma ampliação de espaços que rumam para a soberania no uso da moeda, a Casa Branca reage. Vejamos duas evidências, a começar pelos aliados europeus.
“A partir de 2012, o Banco Central europeu se apresentou como provedor de liquidez de último recurso para mercados de ativos denominados em euros. Em 2020 foi criado o European Recovery Fund, com 850 bilhões de euros. Criou-se a expectativa de aumento da oferta de títulos AAA (os mais seguros) disponíveis para bancos centrais.”
Movimento semelhante foi aprofundado pelo governo central da China em seu processo de internacionalização de capitais e abandono progressivo do uso da moeda estadunidense. A tendência é o estabelecer de um território econômico semi-autárquico centrado nas reservas chinesas, como também nos demonstra Nassif.
“Por sua vez, a China passou a investir pesadamente na internacionalização da sua moeda, graças ao aumento do comércio exterior – importações e exportações -, investimentos na Rota da Seda, uma rede global permitindo swap do renminbi com bancos oficiais de compensação e, finalmente, a adição do renminbi à cesta de Direitos Especiais de Saque, a moeda do FMI. O próximo passo será a emissão do e-CNY, a moeda digital chinesa.”
Não se trata de alarmismo, mas de seguir o empenho da segunda maior economia do planeta e que caminha a passos largos para ser a primeira. O mundo para quem depende de dólares e da vontade política das oligarquias anglo-saxãs é muito arriscado.
Perigo real e imediato
Trabalho com um princípio analítico de que se tenho dúvidas profundas, pergunto aos maiores interessados em manutenção do status quo. Se do coração das finanças europeias vem um sinal de alerta para o privilégio exorbitante do dólar e a necessidade de se buscar alternativas e da construção de espaços independentes da “boa vontade” de Washington e NYC, é mais que razoável estar atento.
O analista do Crédit Suisse Zoltan Pozsar nos brinda com essa análise com excelente capacidade de síntese:
“Na física o conhecimento é cumulativo. Em finanças, o conhecimento é cíclico – as pessoas vêm e vão, tendemos a esquecer. Acreditamos que não há diferença entre o Lehman Brothers incapaz de devolver os fundos em dinheiro porque seu agente de compensação tripartite não está disposto a desfazer as operações compromissadas, e bancos incapazes de receber e fazer pagamentos porque estão fora do SWIFT. O risco Herstatt – risco de liquidação – deve seu nome a um acidente em um único banco. O risco no cenário atual envolve todo o sistema bancário de um país. A incapacidade dos bancos de efetuar pagamentos devido à sua exclusão do SWIFT é a mesma como a incapacidade do Lehman Brothers de fazer pagamentos devido à falta de vontade de seu banco de compensação enviar pagamentos em seu nome. A história não se repete, mas rima. A consequência de excluir bancos do SWIFT é real, assim como a necessidade para que os bancos centrais reativem as operações diárias de fornecimento de fundos em dólares americanos.”
Uma das formas de combater essa necessidade premente, o que pode levar a uma renovada e permanente corrida ao dólar, é a busca por alternativas. Para isso é preciso ter escala, e a América Latina, ou mesmo a América do Sul – começando pelo Mercosul – pode ser um pilar inicial. Tal tema é importante demais para abordar brevemente, mas vale a observação e o compromisso de texto exclusivo para logo.
O conceito-chave está apresentado. Buscar ampliar a erosão do dólar e combater o apagamento da memória coletiva sobre as crises provocadas pelas falências bancárias e a prepotência dos EUA em escala global, usando a moeda e as finanças com a eficiência de um porta-aviões. Na defesa das economias reais que garantam o bem-estar das populações, somente o arranjo de territórios econômicos complementares nos continentes pode abrir este espaço necessário. Ficar à mercê de Washington e sua tirania financeira é como estar desenganado, subordinando povos e países inteiros ao imperialismo anglo-sionista.