Entre outubro de 1989 e outubro de 1992, as Américas foram o cenário de uma manifestação social única e sem precedentes que marcaria os processos organizacionais e a luta dos oprimidos até os dias atuais: a Campanha Continental 500 Anos de Resistência Indígena, Negra e Popular, promovida no marco do meio milênio desde o início da invasão européia de nossas terras.

Além de ter sido promovida por organizações indígenas e camponesas com fortes raízes nacionais, mas sem qualquer filiação internacional (ou seja, recém-chegados neste campo), a novidade desta campanha estava em sua concepção, cuja premissa central era: “unidade na diversidade”, que conseguiu abrir espaços de confluência – tanto em nível nacional quanto continental – de diferentes setores sociais. E isto, em um momento de refluxo, dispersão e confusão devido ao impacto desintegrador das políticas neoliberais nos processos organizacionais e quando o sentimento de impotência começou a se espalhar em muitas organizações após a queda do Muro de Berlim.

A Campanha foi inicialmente promovida por organizações indígenas e camponesas da Região Andina e pelo Movimento dos Sem Terra (MST) do Brasil, que haviam iniciado um processo de aproximação após uma oficina regional sobre educação e comunicação em 1987, na qual, entre outras resoluções, foi acordado promover um mecanismo de coordenação regional e convocar uma segunda reunião na Colômbia, mas em nível latino-americano. Durante os preparativos, ao ponderar as implicações do chamado para celebrar o “Encontro de Dois Mundos” por ocasião do V Centenário formulado pelos governos da Ibero-América na época, foi acordado transformar o evento em uma plataforma para o lançamento de uma campanha continental em torno dos 500 Anos. Seu objetivo: transformar “o V Centenário da conquista espanhola… no início da autodescoberta de nossa América e um motivo para fortalecer a unidade dos oprimidos”.

O início não foi fácil.  Quando a campanha foi lançada em Bogotá, para a maioria das organizações presentes, foi a primeira vez que se sentaram ao redor da mesma mesa para compartilhar critérios, propostas, abordagens, etc.  Portanto, não demorou muito para que as diferenças surgissem e com elas dúvidas, medos, desconfianças e, é claro, tensões.  Afinal, além de todo o voluntarismo, cada um tinha suas tradições particulares de luta, formas de organização, metodologias e estilos de trabalho, plataformas de exigência, abordagens, etc. No entanto, prevaleceu um acordo de compromisso: “fazer o caminho à medida que avançamos”.

Seu objetivo: transformar “o V Centenário da conquista espanhola… no início da autodescoberta de nossa América e um motivo para fortalecer a unidade dos oprimidos”.

Ao promover um amplo debate e mobilizações de diversas modalidades e abrangência, esta caminhada conseguiu reverter o caráter festivo que o governo espanhol e seus pares do continente quiseram dar ao V Centenário.  Além disso, devido a sua dinâmica, conseguiu transcender a própria campanha e tornar-se um cadinho para o surgimento da coordenação e articulações setoriais, abrindo brechas para o futuro, como mais tarde se desdobrou em órgãos de coordenação para os povos indígenas, a convergência das organizações afro-americanas, a formação da Coordenação Latino-americana de Organizações Rurais (CLOC-Via Campesina) e a Assembléia do Povo de Deus, a reativação da Frente Continental de Organizações Comunais (FCOC), entre outras.

Deve-se ter em mente que os setores mais dinâmicos foram os mais excluídos: povos indígenas, afro-americanos, camponeses, colonos, mulheres, etc., que não só demonstraram novas formas e métodos de organização e expressão, mas também apresentaram novas demandas, com um denominador comum: a aspiração a uma democracia participativa e deliberativa – tanto na vida interna das organizações como na sociedade como um todo – como uma antítese à exclusão social gerada pelo modelo neoliberal.  E nesta perspectiva, o desafio de articular um movimento “amplo, pluralista, multiétnico, plurinacional, pluricultural, anticolonial, anti-imperialista, solidário, auto-gerenciador, democrático contra todas as formas de exploração, opressão, racismo e discriminação” também foi levantado.

Unidade na diversidade

A razão pela qual a Campanha dos 500 Anos assumiu a premissa de “unidade na diversidade” foi a presença de organizações indígenas e suas preocupações sobre o significado e o caráter das alianças, na medida em que seus problemas exigiam ir além de uma leitura baseada exclusivamente na classe, para incorporar a dimensão étnica.  E, obviamente, esta premissa também foi enriquecida ao longo do caminho.

Em termos práticos, isto se traduziu na forma como o processo operacional foi orquestrado: amplos comitês nacionais, articulados regionalmente para indicar seus delegados à coordenação continental, com um secretariado operacional como ponto de ligação e facilitador da troca de informações. Por trás dessa configuração estava o critério de que a Campanha deveria ser acima de tudo um espaço de confluência dos diversos setores envolvidos e que cada um deles poderia promover as iniciativas de sua escolha.

Esta foi uma afirmação da autonomia de cada setor e organização, pois para fazer algo não era necessário pedir permissão a ninguém, a única coisa que surgiu foi a necessidade de coordenar esforços a fim de ser mais contundente.  Além disso, não foi considerada a única campanha, ao contrário, partiu-se do princípio de que o importante era que o maior número de setores falasse sobre os 500 anos, seja dentro ou fora dela, pois desta forma a indiferença em relação aos problemas que ela colocava seria quebrada.

“Por trás dessa configuração estava o critério de que a Campanha deveria ser acima de tudo um espaço de confluência dos diversos setores envolvidos e que cada um deles poderia promover as iniciativas de sua escolha”

Assim, ao reivindicar a diversidade (recusando-se a impor uma única perspectiva), o objetivo era também evitar que a mobilização em torno dos 500 anos se dispersasse e fosse inconseqüente.  Se você quiser, a abordagem implícita foi: valorizar a diversidade, fortificar a unidade. No entanto, a fórmula tinha um pré-requisito: o respeito à diferença.  E este é sem dúvida um dos desafios mais importantes que a Campanha colocou a seus protagonistas.

Deve-se ter em mente que uma grande parte dos movimentos sociais tinha sido educada em uma certa tradição de esquerda marcada pela intolerância da diferença, sob cujos parâmetros a diferença era vista como uma tragédia.  Por esta razão, falar de “unidade na diversidade” é em si mesmo uma ruptura com essa tradição.

Vale lembrar também que em muitas organizações sociais a “questão indígena” era tabu e até mesmo estigmatizada, pois era vista como uma questão manipulada pelo imperialismo para dividir os setores populares. E de fato, muitos exemplos serviram para corroborar esta avaliação, como a forma como o governo de Ronald Reagan usou os Miskitos na Nicarágua para pressionar o Sandinismo, apenas para deixá-los à sua sorte quando perderam seu significado instrumental. E não há dúvida de que a campanha contribuiu para o reconhecimento e a legitimidade das reivindicações dos povos indígenas, que nessa época já estavam começando a emergir com força em vários países.

Protagonismo e reunião social

Ao contrário de outras iniciativas de caráter continental que estavam em andamento na época, como as que se opunham à dívida externa, por exemplo, o que permitiu à Campanha ganhar força, além de sua motivação histórica, entre outros fatores, foi o fato de ter nascido com protagonismo social (geralmente diante da indiferença, se não suspeita, das partes) e se enraizar em processos nacionais, lado a lado com o despertar indígena que ocorreu em vários países da região, como no caso do Levante Indígena no Equador em junho de 1990.

Assim, os aspectos continentais e regionais foram mais uma expressão da dinâmica e das convergências (em muitos casos sem precedentes) que os comitês nacionais haviam conseguido articular, e não o contrário. Pode-se dizer que foi uma resposta pioneira do campo popular ao fenômeno da globalização, pois permitiu que ações locais se entrelaçassem com ações globais, contrariando o localismo que o neoliberalismo procurava impor às demandas sociais; ao mesmo tempo, gerou um movimento significativo de solidariedade internacional, etc. E isto em uma época em que os meios de comunicação à distância eram precários e muito caros, com exceção do correio postal. Embora a Campanha fosse também pioneira no uso da comunicação digital, que em alguns países estava ainda em sua infância, os dias da Internet viriam anos mais tarde.

Mas, além das ações implementadas, o importante é que este processo tornou possível levantar em grande parte as barreiras que haviam se colocado no caminho, tanto entre setores como entre países. Em outras palavras, criou um espaço no qual diferentes movimentos poderiam se reunir para trocar iniciativas e experiências, fazer denúncias, apresentar seus pontos de vista, gerar solidariedade e, ao mesmo tempo, definir eixos comuns para lutas conjuntas. Em outras palavras, não foi uma proposta para centralizar as organizações, mas para unificar os eixos de luta.

Se quiser, foi uma iniciativa que procurou responder à necessidade de romper o isolamento e a dispersão em que os movimentos sociais debatem; à necessidade de superar as relações fugazes e precárias que existem entre organizações em nível regional e continental; à necessidade de solidariedade efetiva com lutas específicas; à necessidade de ter uma voz própria nos assuntos e espaços internacionais; e para isso colocou ênfase em dinâmicas e mecanismos, e não em esquemas e estruturas.

Nos três anos que durou a conferência, houve inúmeras reuniões, uma série de eventos, visitas, trocas de experiências e pontos de vista, etc., em nível nacional, regional e continental, que permitiram forjar novos laços de solidariedade, não apenas em termos de maior apoio e acompanhamento ativo de suas respectivas lutas, mas também como participantes de uma luta comum. Pode-se dizer que no Primeiro Encontro em Bogotá houve um encontro de siglas que quase ninguém sabia ou podia decifrar, mas dois anos depois em Xelaju (Guatemala) já estávamos enfrentando identidades básicas e com resultados alcançados com esta ação comum, a fim de propor perspectivas para um movimento continental no Terceiro Encontro em Manágua.

Em resumo, esta Campanha tornou-se uma espécie de grande trincheira que tornou possível resistir e tentar avançar com processos organizacionais, não apenas em nível nacional, mas também em nível continental e até global, como evidenciado pelo fato de que, entretanto, ganhou o Prêmio Nobel Alternativo para o Movimento Sem Terra (MST) do Brasil de 1991 e o Prêmio Nobel de 1992 para a indígena guatemalteca Rigoberta Menchú Tum.

Por outro lado, o esquema organizativo (descentralizado, órgão de ligação – não de liderança -, reconhecimento e respeito à autonomia de seus membros, busca de consenso como norma para a tomada de decisões, etc.) tornou-se o ponto de referência nos processos de articulação que foram tecidos no calor da Campanha, como no caso da CLOC-Vía Campesina, que até adotou o simbolismo. E o mesmo aconteceu com campanhas posteriores, como a Campanha Continental contra a ALCA, e outras iniciativas populares atualmente em andamento.

Tudo isso, em essência, demonstra a capacidade que a Campanha alcançou em termos de conexões para agir globalmente, a partir de iniciativas locais. Ou seja, algo que não é visto à primeira vista, nem necessariamente devidamente valorizado, veio à tona: a articulação de uma rede de comunicação, de redes de informação, de espaços de interação, etc., que são requisitos básicos para a coordenação.


 

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