Jose Carlos Mariategui

Então voltarás no orvalho da vida na gargalhada
marina dos negros
no campo dividido entre os índios
na alegria nacional de viver das mulheres.
Voltarás novamente
na terra para o camponês
na fábrica ao trabalhador
em saúde e água para todos
e no alfabeto vivo dos livros.

Para José Carlos Mariátegui, Gustavo Valcárcel (1955)

José Carlos Mariátegui, o Amauta¹ que perdeu a vida com apenas 35 anos, deixou um legado teórico e político inescapável para os projetos emancipatórios de Nossa América e mundiais. Esse pequeno gesto para um grande revolucionário não busca ser uma memória melancólica, mas uma recuperação da vitalidade do ser e do fazer de Mariátegui, porque quando se trata de traçar uma práxis com capacidade de influenciar a realidade, é necessário fazer uso de todas as ferramentas práticas e teóricas fornecidas por nosso povo e por nossos intelectuais orgânicos.

A produção intelectual de Mariátegui é filha fiel de seu tempo, mas seu pensamento transcende os escassos anos de sua vida, percorrendo as fronteiras do tempo para sussurrar àqueles que quiserem ouvir chaves para a interpretação/ transformação da realidade. A título de apresentação, queremos destacar cinco grandes legados – entre muitos outros – deixados por Mariátegui que permanecem totalmente válidos, apesar de terem sido escritos há 100 anos.

Contra o positivismo: por uma nova racionalidade socialista

Mariátegui nasceu em Moquegua (Peru) em 14 de junho de 1894, e a maior parte de sua vida transcorre em um contexto de fortes convulsões sistêmicas: o fim da hegemonia do liberalismo, o colapso do Iluminismo e do positivismo como sistema de ideias, a Primeira Guerra Mundial e o período entre guerras, a crise econômica, a queda dos velhos impérios europeus e a emergência de titãs como o comunismo e o monstro fascista.

Em tenra idade, sofre de artrite tuberculosa, raquitismo e um acidente na escola aos 8 anos de idade, que o impede de continuar seus estudos formais, condenando-o a uma infância prostrada em uma cama de hospital. Essas circunstâncias serão mais tarde a causa da amputação de uma das suas pernas. No entanto, a vontade de Mariátegui não é contida: ele se converte em um ávido leitor autodidata para, em seguida, iniciar um caminho no jornalismo que o acompanha ao longo de toda sua vida laboral, intelectual e política.

Sua sensibilidade à causa dos oprimidos e oprimidas, sua aproximação aos círculos intelectuais de vanguarda literária do Peru e uma militância pró-indígena e antigamonal² lhe custam o exílio em 1919, sob o governo de Augusto Leguía. Instalado na Itália, Mariátegui abraça as ideias do marxismo sob um ângulo particular, seduzido pelo espírito da épica europeia, o zeitgeist do entreguerras: um marxismo despido de elementos positivistas, deterministas e econômicos.

Contemporâneo de Gramsci, Lukács, Bloch, Brecht e Luxemburgo, estudioso de Sorel, Gobetti e Croce, Amauta destaca o potencial do marxismo como um método criativo e crítico que, situado em processos concretos e através de sua análise meticulosa, habilita a práxis revolucionária. Essa forma de compreender a realidade converte Mariátegui no pai do marxismo latino-americano e em uma pedra angular do pensamento emancipatório.

De suas primeiras viagens, Mariátegui extrai uma lição valiosa: a necessidade de conjugar a análise cuidadosa da realidade com a exaltação do potencial criativo da práxis humana, destacando a configuração particular das formações sociais e de classe de cada realidade. Neste sentido, o artigo “Aniversário e balanço” aponta para sua já imortalizada declaração de que “certamente, não queremos que o socialismo seja um decalque na América. Deve ser uma criação heróica”, um convite a não repetir receitas e pensar onde os pés pisam, adotando uma sensibilidade particular à nossa cultura, às nossas tradições, à nossa história e à correlação de forças típicas do contexto nosso-americano.

“Amauta destaca o potencial do marxismo como um método criativo e crítico que, situado em processos concretos e através de sua análise meticulosa, habilita a práxis revolucionária”

Convite à vida heroica: o mito

Desta primeira grande lição derivam as contribuições do Amauta que seguiram. Sua rejeição ao positivismo não afasta Mariátegui do otimismo da vontade, ao contrário, reforça suas esperanças nas promessas emancipatórias do projeto iluminista. Não coloca seu foco nos determinantes estruturais do desenvolvimento histórico, mas sim na análise das ações dos povos: o que mobiliza as classes oprimidas? De onde eles tiram a convicção, a força para enfrentar um inimigo desigualmente mais poderoso? O que os convida a organizar-se coletivamente? Aqui Mariátegui encontra um conceito mobilizador, o mito³o mito é quem fornece as imagens, a força que mobiliza o eu profundo e transcende o que existe, convidando à vida heroica. Mariátegui não descarta a ideia de racionalidade do projeto moderno, mas aponta o poder do mito no momento da criação da racionalidade alternativa, digna de uma vida autêntica.

O mito religa a comunidade e fornece códigos comuns de interpretação e intervenção na realidade, por isso, em algum momento, é quem produz a comunidade. No entanto, o mito não deve ser entendido como uma construção ficcional, um “engano” que permite a utilização instrumental das massas: emana da história de cada povo e é a articulação tensa, mas indissociável, das tendências milenares e dos processos emergentes. Para organizações populares, trata-se de compreender a força mobilizadora do mito de nosso povo e não de criar um novo mito alheio às sensibilidades populares.

Arte da capa: Daniela Ruggeri y Tings Chak, Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
Arte: Daniela Ruggeri y Tings Chak, Instituto Tricontinental de
Pesquisa Social

As classes subalternas na América Latina: o problema do índio

Mariátegui presencia um período de constantes sublevações indígenas no Peru. Despojadas de suas terras, semi-escravizadas pelo sistema gamonal e violentadas permanentemente, muitas comunidades protagonizaram rebeliões e uniram causas aos movimentos operários, estudantis e intelectuais. Contemporâneo de González Prada, Valcárcel e Ugarte, Mariátegui segue cuidadosamente “o problema do índio” e nesse clima intelectual revitaliza a tese do comunismo inca, não como uma restauração de um passado idílico perdido, mas como parte da matriz cultural nacional e andina: o estudo da realidade peruana é inseparável da questão do índio.

O Amauta reconhece o potencial de um sujeito indígena sem abandonar a perspectiva de classe. Rejeitando o determinismo e o evolucionismo, entende a heterogeneidade dos sujeitos oprimidos e propõe articular o movimento trabalhista, as lutas camponesas indígenas, estudantis e até mesmo a luta das mulheres. Um exemplo deste último é encontrado no artigo aqui compilado, “Reivindicações feministas” (1928), que é muito inovador no contexto em que foi escrito. Mariátegu não essencializa um sujeito revolucionário, mas descobre o potencial transformador na subalternidade, na multiplicidade de experiências dos oprimidos e, sobretudo, em sua capacidade de ação, na vontade de emancipação, na medida em que esse potencial se encontre ancorado na própria história dos sujeitos.

O eu profundo: uma nova ética socialista

O legado de Mariátegui também está vinculado ao seu desprezo pela casca vazia que a vida oferece sob a lógica  da razão instrumental. O que o socialismo tem a oferecer aos nossos povos? O que o socialismo tem a oferecer a um trabalhador, a uma camponesa, a uma jovem, a um índio? Mariátegui acredita profundamente na necessidade de um horizonte de esperança como força motriz de um novo projeto civilizatório e de uma nova racionalidade, que permita a recomposição do tecido social, guiado por uma nova ética socialista. Por esse motivo, o intelectual peruano não propõe uma separação cirúrgica entre a sociedade do agora e a sociedade do amanhã, mas valoriza as experiências prefigurativas, exalta o peso das subjetividades coletivas como portadoras de uma verdadeira ética socialista. Recuperando o caráter histórico da práxis nas comunidades incas, oferece alternativas econômicas, sociais e políticas próprias dos povos indo-americanos, com o objetivo de contestar as formas e os conteúdos cotidianos das classes dominantes, numa espécie de dialética entre o passado e o futuro.

“Mariátegui acredita profundamente na necessidade de um horizonte de esperança como força motriz de um novo projeto civilizatório e de uma nova racionalidade, que permita a recomposição do tecido social, guiado por uma nova ética socialista”

No artigo “Ética e Socialismo” (1928) que, em meio a uma polêmica com os revisionistas de sua época, destaca o componente ético do projeto socialista. Nesse sentido, ele nos convida a pensar: qual é o conteúdo ético de nosso projeto político? Quais são os elementos do socialismo prático em nosso que-fazer diário, em nossa militância de base, em nossos territórios, em nossa organização?

Nacionalismo Internacionalista: forjando uma esquerda situada

Em um célebre escrito sobre Mariátegui, Flores Galindo  indica que a experiência do exílio gerou duas ideias no Amauta: a defesa do nacional e a necessidade do internacionalismo. Mariátegui não é apenas um ávido conhecedor e analista internacional, mas desde seu retorno ao Peru em 1923, aposta no fortalecimento da organização das classes subalternas em escala internacional: contribuindo para a Internacional Sindical Vermelha e para a III Internacional Comunista. Apesar de sustentar sérias diferenças com as abordagens etapistas e padronizadas da III Internacional, continua a intervir nela como uma organização verdadeiramente existente da esquerda internacional, motivo pelo qual recebe fortes críticas do aprismo⁶. Isso é uma mostra de seu antissectarismo e de sua visão abrangente do momento histórico, uma vez que uma força política que carece de uma perspectiva geopolítica e de estratégia supranacional é míope e está destinada a esbarrar na mesma pedra repetidamente, até cair.

O internacionalismo de Mariátegui se conjuga com a necessidade imperante de entender os processos nacionais. Sua colaboração jornalística na revista Mundial faz parte desse legado, escrevendo assiduamente a seção Peruanicemos al Perú. A generalização da forma do Estado como modo de organização e dominação social o obriga a compreender os processos nacionais para uma intervenção política acertada e, nesse sentido, ele rejeita inúmeras propostas da III Internacional que propõem a mesma forma de intervenção política nas diversas realidades nacionais que integram a Internacional.

Os legados que listamos, bem como os artigos aqui compilados, são apenas um recorte arbitrário do prolífico trabalho do Amauta. Seu pensamento e sua prática permanecem enormemente vigentes e nos ensinam a desessencializar os processos políticos, colocando o foco na realidade em que vivemos, e a colocar nosso maior empenho organizacional e humano em levar uma vida heroica em busca de uma nova racionalidade socialista


Lucía Reartes e Yael Ardiles são membros da Escola José Carlos Mariátegui, que se concentra no treinamento de movimentos populares e está sediada na Argentina. O texto aqui publicado faz parte do livro Mariategui editado conjuntamente por Batalla de Ideas (Argentina), Expressão Popular (Brasil), Livros de Esquerda (Índia), Chintha Publishers, Vaam Prakashan, Bharati Puthakalayam e o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Faça o download do livro completo aqui

Referências

1) Mariátegui foi apelidado de “Amauta” pelo nome da revista que ele mesmo fundou em 1926. Amauta (amawt’a) vem do quéchua – a língua do povo Inca – e significa “mestre” ou “sábio”.

2) Gamonalismo foi o nome adotado pelo regime oligárquico no Peru. O nome gamonal foi atribuído aos latifundiários crioulos, sem casta de cunho colonial, que expandiram suas propriedades e seu poder sociopolítico expropriando terras dos indígenas ayllus com métodos violentos.

3) Esse conceito provém das leituras do filósofo francês Georges Sorel, mas é reinterpretado e qualificado por Mariátegui.

4) É assim que entitula o famoso segundo anexo do livro Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, publicado pela primeira vez em 1928, em Lima.

5) Fazemos referência ao livro A agonia de Mariátegui, de Alberto Flores Galindo.

6) A Aliança Popular Revolucionária Latino-americana (Apra) foi criada em 1924 por Victor Raúl Haya de la Torre. Mariátegui e um grupo de militantes e intelectuais próximos a ele formaram parte dela, mas as diferenças foram se aprofundando até se produzir uma ruptura no ano de 1928.

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