No último mês foram resgatados vídeos com entrevistas, aulas e conferências da economista portuguesa Maria da Conceição Tavares. Seu forte acento, sua postura marcante e, principalmente, a indignação que resultava em frases de efeito, causou um fenômeno social muito interessante.

Há algumas décadas estamos observando o declínio da figura do intelectual no sentido estrito do termo. Se por um lado a ascensão das redes sociais trouxe uma espécie de democratização do conhecimento e debates sociais mais horizontalizados, por outro é notória a decadência de análises mais elaboradas, e livres das demandas do mercado, que dita com cada vez mais frequência os rumos das análises daqueles que se autoproclamam formadores de opinião.

 

É inegável que o avanço do neoliberalismo adentrou todas as esferas da vida humana, e não é incomum vermos escritores, jornalistas, filósofos e uma gama de profissionais atrelar sua imagem a marcas, são garotas e garotos-propaganda e como tal necessitam seguir as regras impostas pelo capital. Nesse sentido, não importa mais ser conservador ou progressista, as regras são ditadas pelo mesmo chefe.

 

Diante da complexidade do assunto, nos colocamos a pensar: há todavia intelectualidade?

 

Sem dúvida o assunto é amplo e merece uma reflexão em perspectiva de larga duração, que remete à formação dessa classe de mulheres e homens que tinham na liberdade do pensamento o mote para refletir de maneira crítica e gerar um campo de tensão que permitia ao leitor questionar os problemas sociais de forma mais apurada, não tão imediatista como ocorre atualmente.

 

A rapidez da informação, confundida com reflexão, gera uma preocupação real e certa inquietação quando pensamos se sobrou alguma possibilidade de mudanças estruturais diante de discursos cada vez mais fragmentados, um verdadeiro mosaico de opiniões em pequenos textos elaborados para o Facebook e o Instagram.

 

Argumentos como “facilitar a linguagem” e “liberdade de opinião” ocultam muitas vezes a falta de massa que antes sustentava o tema dentro do texto ou da fala. Nesse emaranhado, o peso dos estudos sociais, políticos e históricos perdeu terreno e muitas vezes não há conexão entre o fato e o processo. Sem essa correlação perdemos o nexo, são só fragmentos de pensamento cada vez mais miúdos, poderíamos pensar em certa intencionalidade na fragmentação da totalidade.

 

A origem 

 

O termo intelectual nasceu no século XIX, precisamente quando Emilie Zola, junto com outros escritores, escreveu para o periódico L’Aurore o manifesto denominado J’accuse.

 

O artigo era uma denúncia sobre as arbitrariedades do governo da França contra Alfred Dreyfus, capitão de origem judia que foi acusado injustamente de espionagem pelo Exército francês. Tal manifestação foi uma demonstração pulsante de apoio ao general encarcerado e expôs o caráter antissemita da corporação. Zola e seus companheiros, a maioria escritores, utilizaram sua voz e prestígio para iluminar a situação de injustiça social. Por meio de uma escritura crítica e de um sistema argumentativo racional, mas repleto de emocionalidade, nasceu o que hoje denominamos intelectual, esse indivíduo que opina sobre fatos relevantes com uma voz autorizada, respeitada e legitimada socialmente.

 

Como atribuir sentido de combate àquilo que não lhe diz respeito diretamente? Como poderia o proletariado, em si mesmo, determinar uma interpretação de Zola, Poussin, Pop, Sport-Dimanche ou dos últimos acontecimentos? Para “interpretar” todas essas questões precisam de representantes: aqueles que Brecht chama de “artistas” ou “trabalhadores do intelecto” … todos aqueles que têm à sua disposição a linguagem do indireto, o indireto como linguagem; em uma palavra, oblatos que se dedicam à interpretação proletária dos fatos culturais. (Barthes, 1974, p. 83).

 

O caso Dreyfus inaugurou uma etapa no âmbito do saber, e a intelectualidade será classificada como a classe que atua como “farol” em tempos escuros, expondo a opressão, as desigualdades sociais, as violações dos direitos humanos e posteriormente adentrando o campo político, atuando conjuntamente com os mais oprimidos. 

 

Para o historiador Enzo Traverso, a imagem do intelectual pode ser descrita na imagem de George Orwell com um fuzil no ombro durante a Guerra Civil Espanhola, Marc Bloch durante a resistência francesa, Edward Said, eminente professor de literatura pela Universidade de Columbia, lançando pedras contra os postos de controle israelenses na fronteira com o Líbano. Em suas palavras: “Na história do século XX, a noção de intelectual não pode estar dissociada do compromisso político”.

 

O intelectual e a formação política

 

Sem dúvida Gramsci foi o intelectual que mais se debruçou a entender a importância tanto desses indivíduos que entregavam sua vida a causas que podiam buscar a construção de uma sociedade mais justa como daqueles que dedicaram sua escrita como forma de manutenção do status quo.

 

Segundo o autor, os intelectuais são parte de grupos que representam classes sociais distintas, ou seja, cada grupo social produz sua capa de intelectuais, criando uma área de tensão que buscava a hegemonia do saber e poder: Cada grupo social, por nascer tem uma função essencial no mundo da produção econômica, cria organicamente e conjuntamente uma ou mais fileiras de intelectuais que lhe conferem homogeneidade e consciência de sua função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político. (Gramsci, 2018, p. 8).

 

Ou seja, o intelectual atua muitas vezes como agente de determinados interesses, formulando um discurso que busca manter a supremacia, ratificando um contrato ideológico, político e econômico com sua classe. Pelo olhar de Gramsci fica evidente que o intelectual exerce um papel fundamental na manutenção das estruturas de poder ou na formulação de estratégias de resistência.[1]

 

O grande desafio seria a formação de uma intelectualidade contra-hegemônica, perfeitamente possível segundo Antonio Gramsci, nascida em grupos subalternos, uma intelectualidade orgânica, forjada por um saber que saiu da práxis. Seria por meio desses homens das camadas marginalizadas que surgiriam novas formas de pensar a sociedade, configurando um campo de debates onde os grupos excluídos ganhariam voz, ou seja, haveria a possibilidade de uma efetiva mudança ética e moral. O que seria o intelectual orgânico? Gramsci responde: “[…] o que busca a relação entre a organização e as massas como uma relação entre educadores e educados, que inverte dinamicamente o papel dos intelectuais – no seio do intelectual orgânico, a conquista e transformação dos aparatos de Estado – para criar as condições dessa nova hegemonia e transformação da sociedade civil ”.

 

Gramsci

 

No entanto, com o passar dos anos, o desencantamento com a polis e o “fim das ideologias” gerou a era da informação em vez da reflexão e o desenvolvimento cada vez maior  do senso comum.

 

Ser um intelectual até então era um compromisso ético e social que exigia posicionamento, mas, mais que isso, liberdade para escrever, questionar sistemas, desestruturar o pensamento constantemente, incomodar.

 

Se Gramsci estava preocupado com o fascismo e inserido num cenário que exigia dos pensadores uma postura política marcada pela divisão entre esquerda e direita, fascismo e nazismo versus comunismo como única saída para a barbárie, no pós-guerra Sartre surge para mostrar que o compromisso do intelectual vai além da ideologia partidária. Os “pensadores” necessitam da liberdade para analisar a complexidade da existência, mas sem perder a dimensão das estruturas que oprimem os indivíduos. Sartre surge assim como o maitre à penser[2]de toda uma época.

 

Para o filósofo o intelectual seria alguém que “se mete no que importa”, rechaça o conformismo, transgride os tabus e toma o espaço público. Foi na escrita, mas também nas ruas, que a figura de Sartre ficou imortalizada.

 

É importante ressaltar que nada disso tem relação com perfeição ideológica, coerência plena ou ausência de equívocos, não! O compromisso está precisamente no movimento, na esfera da refutação, no eterno construir e destruir, no rompimento de paradigmas.

 

Contra o moralismo mercadológico

 

No último mês foram resgatados por jovens de todo o país vídeos com entrevistas, aulas e conferências da economista portuguesa Maria da Conceição Tavares. Seu forte acento, sua postura marcante em sala de aula e, principalmente, a indignação que resultava em frases de efeito, mas sempre acompanhada por uma profunda consistência, causou um fenômeno social bastante interessante.

 

Se por um lado a postura de Maria da Conceição causa admiração, por outro, no atual momento, pode ser vista com maus olhos. A economista não cansa de marcar sua postura e defender sistematicamente uma esquerda dura já bastante esquecida, uma esquerda dos pobres e oprimidos pela maquinaria capitalista, a esquerda das estruturas. Então questionamos: não estaríamos carentes de consistência? A formação sólida para refletir não é uma necessidade urgente dentro de uma sociedade que entende as mazelas sociais somente por partes?

 

Nos últimos tempos o que mais vemos é uma mistura de misticismo, pseudociência, história e sociologia. Brincam de criticar as estruturas, mas defendem os aparelhos que secularmente oprimem os indivíduos, por exemplo as religiões.

 

Então, a quem convém menosprezar o conhecimento e a figura do intelectual? Aos fascistas ou aos oportunistas ditos progressistas que se aproveitam de suas características individuais para gerar vínculos sociais frouxos e performar um falso interesse pela classe trabalhadora oprimida, quando na verdade recebem dinheiro do opressor. A quem convém menosprezar a academia? Os professores?

 

Ao resgatarem Maria da Conceição, vimos que nada substitui a consistência do pensamento, que likes e textos curtos não conseguem soterrar a coerência de quem dedicou uma vida a ensinar e aprender.

 

Precisamos readquirir a liberdade do pensar, do errar e lembrar que a pseudoperfeição moral e ideológica muitas vezes é somente uma maneira acomodada que alguns encontraram para sobreviver em tempos de guerra.

 


[1] A ligação orgânica entre a estrutura social e o ideológico-político é assegurada pelos intelectuais, “funcionários da superestrutura”. São eles que asseguram a hegemonia da classe dirigente, elaboram e difundem sua concepção do mundo em todas as classes, por intermédio da filosofia da religião, do folclore, ou simplesmente do senso comum. (Chatelet, 2009, p.196).

[2] Espécie de guru do pensamento.

 

Camila Koenigstein. Graduada em História, pela Pontifícia Universidade Católica – SP e pós graduada em Sociopsicologia pela Fundação de Sociologia e Política – SP. Atualmente faz Mestrado em Ciências Sociais, com ênfase em América Latina y Caribe pela Universidade de Buenos Aires (UBA). Colaboradora da ALAI e do Jornal Resumen latinoamericano. Colunista do Jornal GGN, portal de notícias Pragmatismo Político e Jornalistasonline.